“Porque
olhou para a sua pobre serva. Por isso, desde agora, me proclamarão
bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que
é poderoso e cujo nome é santo.”
Desde que nasci,
frequentei, por quatro décadas, quando era solteiro em Manaus, a igreja – hoje
Santuário – de Nossa Senhora Aparecida. Ouvi e aprendi que Maria subiu de corpo
e alma para o Céu; ou seja, Maria nunca morreu. Segundo a doutrina católica,
isso é chamado de Assunção de Maria, proclamada como dogma de fé em 1950.
Será que os padres realmente disseram isso, ou fui eu quem chegou a essa
conclusão?
Há cerca de quinze
anos, na festa que hoje se comemora, 15 de agosto, Assunção de Nossa Senhora ao
Céu, o padre redentorista Luís Kirchner disse algo que já sabíamos. Reafirmando
o dogma de fé proclamado pela Igreja e definido pelo Papa Pio XII, em 1950, por
meio da Constituição Apostólica Munificentissimus Deus: “A
Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida
terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial.”
Deve-se lembrar que foi uma decisão quase
colegiada. O Sumo Pontífice havia consultado o episcopado, por meio da carta
encíclica Deiparae Virginis Mariae, sobre a necessidade de
definir esse dogma: “Assunta em corpo e alma à glória celestial.” Ou
seja, houve um processo consultivo amplo antes da definição oficial.
É ponto pacífico que
ela subiu com ajuda divina. Não foi uma ascensão como a de Cristo, mas uma
assunção. A verdade é que todo acréscimo a esse texto é fruto da imaginação de
cada um.
Estava tudo tão certo
na minha cabeça, até que, em uma novena em honra de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, que ocorre todas as terças-feiras em Aparecida, com mais de dois mil
fiéis na igreja, o padre, na homilia, falou sobre a morte de Nossa Senhora.
Fiquei em estado de
choque e irritado com ele. Já tinha quase 50 anos e nunca tinha ouvido
falar sobre isso. Pensei: o que é que ele está dizendo? Ele está ensinando
errado. E o dogma de que Maria subiu ao Céu com corpo e alma? Se ela morreu e
subiu de corpo e alma, então ela morreu e ressuscitou? Morte significa a separação
do corpo e da alma. Se Maria morreu, a alma se separou do corpo, depois voltou
ao corpo ? Isso não faz o menor sentido.
O padre de Aparecida
completou que as Igrejas orientais chamam isso de “Dormição de Nossa Senhora”.
Dormição de Nossa
Senhora — o que é isso? Trata-se de um eufemismo (“acepção mais agradável,
utilizada para suavizar ou minimizar o peso negativo de outra palavra”)
para dizer que Maria morreu. Na realidade, dormiu, acordou e subiu ao Céu de
corpo e alma. É exatamente isso que as Igrejas orientais celebram.
Mas elas não estão
sozinhas. São João Paulo II também acreditava nisso. Ele disse, numa catequese
das quartas-feiras, em 25 de junho de 1997, em A Dormida da Mãe de Deus:
“Qualquer que tenha sido o fato orgânico e biológico que, sob o aspecto
físico, causou a cessação da vida do corpo, pode-se dizer que a passagem desta
vida à outra constituiu, para Maria, uma maturação da graça na glória, de tal
forma que, jamais como nesse caso, a morte pôde ser concebida como uma
'dormida'.”
Talvez eu tenha de
ler o discurso todo para verificar se o Santo Padre apresenta algum argumento
sobre a necessidade de Nossa Senhora morrer. Enquanto isso não acontece,
deixa-me lembrar que o Papa Bento XVI, durante o seu pontificado, também
escreveu livros. Ele deixou claro que, quando o Papa quer doutrinar,
direcionar e catequizar toda a Igreja, ele não escreve um livro, mas publica
uma encíclica. Escrever um livro, segundo ele, serve para justificar e deixar
claro que o conteúdo é a opinião pessoal do autor. É óbvio que tudo o que o
Papa diz ou escreve, seja em encíclica ou em livro, tem grande peso para a
Igreja inteira.
Resolvi pesquisar
sobre o assunto, mas não fui muito longe. Decepcionado parei porque fiquei triste com o que
li. Mais ou menos há um ano e meio, no grupo de WhatsApp com amigos que há mais
de 40 anos participaram de um grupo de jovens em Aparecida, esse assunto voltou
a ser comentado. Então, esperei a chegada da Festa da Assunção de Maria para
escrever algo no meu blog sobre isso. Isso faz um ano. Rascunhei algumas
ideias, mas novamente abandonei o assunto. Notei que há muito mais pessoas que
acreditam na morte de Maria do que as que não acreditam.
Na discussão virtual,
eu defendia que Maria nunca morreu. Em defesa da morte de Nossa Senhora, uma
amiga disse o seguinte: “Se Jesus morreu, Maria também tinha de morrer. Ela
não era mais importante do que Ele.” Em algum lugar já tinha ouvido esse
argumento. Mas, se ele é válido, Elias e Henoc (ou Enoque) seriam mais
importantes do que Cristo, porque os dois profetas nunca morreram.
No segundo livro dos
Reis, capítulo 2, versículo 1, encontramos: “Eis o que se passou no dia em
que o Senhor arrebatou Elias ao céu num turbilhão…” No início desse
capítulo, é narrada a conversa entre Elias e Eliseu. Em seguida:
- “Tendo passado, Elias disse a
Eliseu: Pede-me algo antes que eu seja arrebatado de ti: que posso eu
fazer por ti?”
Elias não foi pego de surpresa; ele sabia o que iria acontecer. Eliseu
respondeu: “Seja-me concedida uma porção dobrada do teu espírito.”
- “Pedes uma coisa difícil –
replicou Elias –. Entretanto, se me vires quando eu for arrebatado de ti,
isso te será dado; mas se não me vires, não te será dado.”
- “Continuando o seu caminho,
entretidos a conversar, eis que de repente um carro de fogo com cavalos de
fogo os separou um do outro, e Elias subiu ao céu num turbilhão.”
Desde então, não se
tem mais notícia de Elias, embora tenha sido procurado. Ele reaparece na Bíblia
junto com Moisés, na transfiguração do Monte Tabor.
E o que aconteceu com
Enoque ?
Na segunda carta aos
Hebreus, capítulo 11, versículo 5, São Paulo escreveu: “Pela fé, Enoque foi
arrebatado, sem ter conhecido a morte; e não foi achado, porquanto Deus o
arrebatou; mas a Escritura diz que, antes de ser arrebatado, ele tinha agradado
a Deus (Gn 5,24).” Isso demonstra que, mesmo na tradição bíblica, há
exceções humanas à morte física, concedidas por Deus.
Assim sendo, o
argumento de que Maria tinha de morrer porque Jesus morreu e ela não era maior
que Ele, não se sustenta.
Como Maria, não há
igual. Jesus disse sobre João Batista (Lc 7,28): “Pois vos digo: entre os
nascidos de mulher não há maior que João.” E a Igreja decretou que João Batista
nasceu sem o pecado original? Não. Mas Maria, sim. Ela está em uma categoria
única: é a mãe de Deus, o único sacrário vivo. Ela é a Arca da Nova Aliança,
símbolo da presença viva de Deus na humanidade. A rainha vestida
esplendidamente de ouro de Ofir, que reina no Céu vestida de Sol, tendo a lua
debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas (Ap 12,1). Ela é
bendita entre todas as mulheres, e todas as gerações a chamarão de
bem-aventurada. As leis divinas que se aplicam aos outros seres humanos não se
aplicam a ela.
Na carta aos Romanos,
capítulo 6, versículo 23, São Paulo diz: “Porque o salário do pecado é a
morte, enquanto o dom de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.”
A morte mencionada é a morte eterna, oposta à vida eterna, mas também pode ser
aplicada à morte física. Maria, concebida sem pecado e vivendo toda a sua
existência em santidade, não precisaria passar pela morte física nem pelo
pecado, recebendo de Deus uma Assunção direta.
Muitos de nós já
ouvimos falar de santos cujos corpos permanecem incorruptos: intactos,
conservados sem qualquer produto para mantê-los assim. Isso só é possível
porque Deus assim o quis. Pelo grau de santidade desses santos, poderíamos
dizer que o corpo não sofreu a corrupção da morte; apenas a alma se separou
deles. É um prêmio e um sinal de Deus pelo amor recebido. E ninguém amou mais a
Deus do que Maria.
Imagine a situação de
Nossa Senhora, a puríssima Mãe de Deus, porque ela haveria de morrer? Ou passar
pela dormição?
Isso não faz sentido.
Trata-se de uma crença, e não de uma certeza. Acreditar nisso é esquecer quem é
Maria na história da salvação. O que se aplica aos outros seres humanos não se
aplica a ela.
Deus disse: “…Mas
da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que
dela comeres, certamente morrerás” (Gênesis 2,17). Aqui, trata-se da morte
física também. Por isso, todos morremos. A morte é precedida pelo pecado, o que
diz respeito a todos os seres humanos, exceto a Maria, porque ela não comeu
desse fruto.
São Paulo acrescenta:
“Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo
pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos
pecaram” (Romanos 5,12). Morremos porque pecamos — exceto a Virgem
Santíssima. Portanto, isso não se aplica a ela; ela não passaria pela morte.
São Paulo também diz
que, com a segunda vinda de Cristo, alguns não passarão pela morte física: “Eis
que vos revelo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos
transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última
trombeta. Pois a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e
nós seremos transformados” (1 Coríntios 15,51-52).
Se na segunda vinda
de Cristo nem todos morrerão, por que, na sua primeira vinda, Maria,
obrigatoriamente, teria de morrer?
Até que se prove o
contrário, este herege acredita que Maria Santíssima, como afirma o dogma da
Igreja Católica, subiu aos Céus de corpo e alma, sem nunca ter morrido.
Como já vimos, a
morte e o pecado andam juntos: a morte é consequência do pecado. Se Maria nunca
pecou, logo Maria nunca morreu.
O dogma da Imaculada
Conceição de Maria foi confirmado pela própria Virgem. Quando Nossa Senhora
apareceu à jovem Bernadette Soubirous, em uma gruta em Lourdes, França, e esta
perguntou: “Quem é a senhora?”, Maria respondeu: “Eu sou a Imaculada
Conceição.” Por que Maria teria de passar pela morte ?
As Escrituras
Sagradas nos trazem muitas informações. A elas se somam as revelações de Jesus
e Maria, feitas presencialmente a videntes e santos. São famosas as aparições
em Fátima, os escritos de Santa Faustina e de Santa Brígida, para citar apenas
alguns exemplos. As santas registraram seus diálogos com Cristo e com Nossa
Senhora. Mas nenhum vidente, santo ou santa divulgou que ouviu de Maria que ela
tenha morrido.
A vidente Vicka
Ivankovic, de Medjugorje, há anos divulga que está escrevendo um livro sobre a
vida de Nossa Senhora, com textos ditados pela própria Virgem Maria.
Possivelmente, quando o livro for publicado, saberemos se Maria morreu ou não —
e, se morreu, qual seria a necessidade para a nossa salvação ou qual o desígnio
de Deus nesse acontecimento.
Eu ainda não entendi
a necessidade de Maria ter morrido. Quando me lembro dos profetas que não
morreram; da profecia de que uma espada atravessaria seu coração; quando
lembro, sendo pai, da fuga para o Egito, porque queriam matar seu bebê; quando
me lembro, como pai, do desespero de ter perdido seu filho por alguns dias;
quando penso que, possivelmente, por onde ela andava, não presenciava violência
nem brigas entre pessoas; mas presenciou violência pela primeira vez justamente
ao ver seu Filho amado sendo flagelado; quando penso em todo o percurso até o
Calvário, no intenso sofrimento registrado no Véu de Verônica; quando penso,
como pai, no quanto Maria sofreu ao presenciar, por três intermináveis horas, o
infinito sofrimento de Cristo na cruz e depois a dor de tê-lo morto nos braços;
quando penso que ninguém jamais amou e sofreu tanto por Cristo… Até que se
prove o contrário, recuso-me a acreditar que Maria, a mãe de Deus, precisava
morrer. Para mim, isso não faz sentido. Espero não ser excomungado por causa
disso.
Não sou o único a
questionar a morte de Maria. Ao longo da história da Igreja, diversos santos e
doutores da fé também refletiram sobre esse mistério e acreditavam que a Virgem
Santíssima não teria passado pela morte. Entre eles, Santo Irineu de Lyon, São
João Damasceno, São Germano de Constantinopla e Santo Afonso Maria de Ligório
sugeriram, em seus escritos, que a Assunção de Maria poderia ter ocorrido sem a
separação de sua alma do corpo. Santo Afonso, inclusive, respeitava a opinião
daqueles que pensavam de forma diferente sobre o assunto. Esses exemplos
mostram que a crença de que Maria não morreu não é uma invenção pessoal ou
moderna, mas tem raízes profundas na tradição cristã, compartilhada por mentes
santas e respeitadas ao longo dos séculos.
Essa mente pecadora
também acredita nisso.
Porto, 15 de agosto
de 2021, Festa da Assunção de Maria.
PS: Só consigo
imaginar a morte de Maria por alguns dias, para que isso provocasse uma
ressurreição triunfante, com Cristo e uma legião de anjos vindo buscá-la
pessoalmente. Creio que, se isso tivesse acontecido, os evangelistas teriam
mencionado.