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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A Dama da Carolina

Eu sempre achei que deveríamos escrever alguma coisa sobre a vovó Eliza. Nós quem? Nós, filhos de Brígido e Glória Nogueira. Acho que o momento, ainda que tardio, chegou. Seus filhos, recentemente, preparam um livro-homenagem intitulado “A Dama da Carolina, Afetos e Sabores.”

Começo assim para dizer que o título deste post já tem dono. Copy@right dos Bessa Freire.

A vovó morou por muitos anos, depois de ter habitado em outros endereços, na rua Carolina das Neves. Por isso ela é chamada a Dama da Carolina. Na realidade, hoje ela seria dona de si mesma, depois da sua partida, a rua passou-se a chamar Eliza Bessa Freire.

Há duas imagens da vovó Elisa que ficaram na minha cabeça. A primeira é de quando éramos criança. Ao avistá-la no início do beco onde morávamos, beco da Indústria, na Aparecida, eu já chorava antecipadamente. Isso quando percebia que estava vindo com a sua “latinha” de enfermeira. Dentro tinha seringas de vidro, que ela  trazia, a pedido do papai, para dar-nos umas injeções; para erradicar a gripe na família. Naquela época as seringas eram de vidro e as agulhas não eram descartáveis. Eram reutilizáveis; para isso tinham que ser fervidas. E fervidas num fogo feito pela queima de álcool, em um estojo de metal. O cheiro que exalava eu tenho na mente até hoje.

Quando eu a via de longe, dizia, embora bastante gripado: papai, eu já estou bom. Nunca funcionou. Na realidade nem doía; era apenas um medo desnecessário que logo passava. Talvez por isso essa lembrança, embora forte, não seja uma lembrança triste, mas apenas de algo que marcou.

A imagem que recordo com mais frequência é ela andando na rua Xavier de Mendonça, da qual a Carolina da Neves é afluente, a caminho da missa diária das 18 horas, na paróquia que ajudou a fundar em 1943. Não existe escola sem aluno e nem igreja sem fiel. Por esse motivo a Congregação do Santíssimo Redentor, em reconhecimento aos seus preclaros serviços prestados a comunidade, concedeu-lhe o título de Oblata Redentorista, pessoa, que mesmo sendo leiga, é membro, digamos, honorário da Congregação.

Lá vai ela, corpo pequeno, não mais que um metro e cinquenta, com cabelos branquinhos, sempre bem arrumados, olhos menores ainda, bem azulzinhos, e muito cheirosinha.

Vocês conhecem aquela música: “Quem me vê assim cantando, não sabe nada de mim” ? Assim era a vovó. Quem a via indo toda arrumadinha para a sua missa diária, não tinha a menor noção do que ela havia passado. Ela pertencia a um seleto grupo de pessoas que trabalham... e como trabalham; como se fossem ateias: nada cai do céu. Lutam... e como lutam; contra a pobreza e as dificuldades de quem se encontra nessa situação. E rezam... e como rezam; como se tudo dependesse de Deus. Teve sua recompensa. Porque Deus é fiel.

Até chegar esse dia, do andar tranquilo, corpo perfumado, perseverança na fé, foram muitos anos com dias difíceis, de muita labuta e resiliência. Perdeu um filho ainda bem criança e ficou viúva com onze filhos; com 48 anos de idade. A filha mais velha tinha vinte quatro e a caçula três anos. Criou muito bem criado todos eles. Alguns são professores universitários, outros exercem atividades diversas. Eu, que tenho apenas quatro, como uma situação financeira muito melhor, me pergunto como isso é possível. Não estou falando simplesmente de alimentá-los; o que por si já uma coisa bastante difícil, mas de dar um direcionamento a todos eles. Por mais que os mais velhos já estivessem de alguma forma ajudando materialmente, o direcionamento, manter a família unida a valores morais e religiosos, era responsabilidade dela. Quarenta e oito anos e onze filhos? Conheço muita gente com 1,8m, com apenas dois ou três filhos, que não conseguiu.

A minha avó Elisa era prima da minha mãe. Isso mesmo. A mãe dela era irmã do pai da minha mãe. Quando este morreu, deixou três filhas crianças, que já não tinham mãe há seis anos: minha mãe, com 11 anos, uma irmã com 13 e a caçula com 6 anos, de cujo parto morreu a sua mãe, minha avó biológica. Foram morar com a avó materna. Minha mãe com 12 anos a caminho dos 13, em 1943, foi acolhida na casa de sua prima, Elisa Bessa Freire, nossa avó, de onde saiu seis anos depois para se casar.

Quando as minhas filhas fizeram 12 anos, eu sempre pensava na minha mãe órfã nesta idade, e sempre vinha na minha cabeça uma imensa gratidão a vovó Eliza por ter dado-lhe um lar. Sem essa impagável ajuda, todo o futuro da minha mãe poderia ter sido diferente. E o nosso também. A mamãe sempre dizia: “ A Eliza não só me deu um teto. Mas me deu uma família; irmãos e irmãs.”

Muito ainda pode ser dito sobre a vovó: o carinho que recebemos e a comidinha gostosa que fazia. Sobre isso o leitor tem de ler o livro cheio de “afetos e sabores” que traz algumas receitas.

A vovó recebeu duas bonitas homenagens públicas: além de doar o seu nome a rua onde viveu por muitos anos com a sua família; hoje, também, existe uma escola pública estadual a ela dedicada.

Pois saiba, nossa querida avó, que enquanto vivermos, seremos eternamente gratos. Nesse dia da Festa da Imaculada Conceição, rogamos a Deus que Ele já a tenha recompensado, levando-a para perto Dele, pelo seu amor e pela sua generosidade.

Vovó Elisa, a Dama da Carolina, nos lhe amamos.

 

 

 

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