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quinta-feira, 25 de maio de 2006

El Milagro Boliviano

Se o Petróleo é Nosso![1] O Gás é Deles!
Passado a indignação inicial geral causada pelo “Decreto Supremo”, por meio do qual Evo Morales nacionalizou a Petrobrás Bolívia Refinacíon S.A. e todas as fontes de hidrocardonetos da Bolívia; e excluindo-se, as ações populistas para plateia interna, chamada pela nossa impressa de “pirotécnica”, com a presença do Exército boliviano nas refinarias, Se boliviano fosse, diria que ele tomou a decisão certa.
É óbvio que opinião é como umbigo, cada um tem a sua. Mas há outros aspectos a serem considerados. O primeiro deles é que Morales está jogando, e como risco e retorno andam juntos, são diretamente proporcionais, devido ao alto grau de risco envolvido nesse jogo, ou ele deu o primeiro passo, para a longo prazo, tirar a Bolívia de situação de país mais pobre da América do Sul, ou ele vai falir a Bolívia de forma que a sua recuperação vai levar muitas décadas. Aí vai ter muita mão de obra barata para as indústrias clandestinas de confecções de coreanos em São Paulo. Daquelas que trabalham 20 bolivianos por metro quadrado, num lugar que cabem cinco, fechados sem janelas.
É sempre bom lembrar que a Bolívia já havia tomado essa atitude em duas outras ocasiões: em 1937, quando nacionalizou a Standard Oil Co. e em 1969, nacionalizando a Gulf Oil. Em ambos casos o resultado foi desastroso. Por esse motivo, a produção de gás e petróleo foi privatizada na década de noventa.
Com o Decreto, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, YPFB, renasce. Usurpando-se de 51% das ações das empresas Chaco S.A., Andina S.A., Transredes S.A., Petrobrás Bolívia Refinación S.A. e Compañia Logística de Hidrocarburos de Bolívia S.A. E através do artigo 8o do Decreto, ela se torna uma empresa “transparente, eficiente”.
O decreto usa e abusa de palavras que ninguém na Bolívia sabe o que significa: definitivo, transparente e eficiente. É a primeira vez que vejo uma empresa ser eficiente através de decreto.
Talvez, por esse motivo, alguns trabalhadores tenham protestado contra o decreto, alegando que se as multinacionais deixarem o país, haverá desemprego.
Talvez Morales esteja blefando, como se estivesse em uma partida de poker. E a diplomacia brasileira está fazendo a coisa certa. Apesar dos discursos inflamados da oposição. E ex-embaixadores saudosistas e de pijamas andarem dizendo que o Brasil não está tomando medidas duras; e que nós já sabíamos desta situação. Ou seja, tudo isso era previsível, e mesmo assim caímos nas mãos de Morales. Eu discordo e explico porquê.
Quanto à previsão de que essa situação poderia ocorrer, isso já era do conhecimento de todos. Muito antes de Morales ganhar as eleições e tomar posse em 22 de janeiro deste ano, Jean Paul Prates, na sua coluna “Petróleo Global” no site de O Globo, já vinha prevendo essa situação desde de junho de 2004. E o próprio jornal O Globo, de 13 de maio de 2006, informa que a Petrobrás já tinha - e que não foi feito agora depois do decreto - um plano B. Ou seja, a Petrobrás também não descartava essa possibilidade. Então, por que ela não tomou nenhuma atitude antes, e nem o governo está sendo “duro” com Morales agora? Porque assim é que tem de ser. Quem tem tudo a perder é a Bolívia e não nós. Quem pode se dar muito mal nessa história é a Bolívia e não o Brasil. A diplomacia brasileira está fazendo a coisa certa, repito. A próxima pedra só deve ser mexida após a Bolívia mexer a dela. Ou para continua na mesma analogia, vamos ver primeiro quais são as cartas que Morales tem. Até agora tudo está como antes. Apesar de todo pirotecnismo de Morales. Nada mudou.
A Petrobrás é responsável por quase um quinto do PIB da Bolivia. Investiu lá mais de US$ 1 bilhão até 1997, e ganhou muito dinheiro na Bolívia. Se depois dos aumentos dos impostos para 82%[2], como determina o Decreto, e ficar com apenas 18% da produção, a Petrobrás continuar na Bolívia, é porque ela estava ganhando muito dinheiro. Nesse caso Evo Morales fez a coisa certa. Mas se a Petrobrás sair do país quem perdeu foi à Bolívia; e perdeu muito.
Mesmo que a Bolívia receba do hermano Hugo Chávez ajuda de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, para gerir a planta da Petrobrás, e explorar o petróleo e o gás, para quem ela vai vender esse gás? A Venezuela tem uma reserva de gás maior do que a da Bolívia, o Equador tem gás e é pequeno. O Peru tem gás, e o Chile não tem uma demanda que possa substituir a do Brasil. A Argentina é autossuficiente em gás desde 1992. Esses países que cercam a Bolívia não teriam uma demanda igual à do Brasil. A Bolívia não tem mar e está localizada no meio do altiplano andino, isto é, não tem estrada, nem uma frota que possa levar o gás a um porto no Pacífico, na costa do Chile. Mas o mais importante já foi dito: falta comprador. O Brasil tem de esperar a Bolívia quebrar os contratos, pois se for ele o primeiro a desobedecer o que foi acordado, como, por exemplo, redução na demanda contratada, será a Bolívia quem se beneficiará de arbitragem internacional. Portanto, a diplomacia brasileira não está contaminada pela ideologia, mas está tomando uma atitude pragmática.
Agora, é muito risco, depois de tudo isso, ainda, em nome de uma integração sulamericana, gastar-se US$23 bilhões em um gasoduto mais ampliado, tendo Bolívia e Venezuela como sócios.[3] Talvez existam interesses outros que fogem a minha compreensão. Muito provavelmente, a falta da minha capacidade de entendimento seja consequência da minha ignorância de informações sobre a geopolítica do petróleo e do gás natural, algo como escreveu Alan Larson[4], que levam os governantes a tomarem decisões, que para nós, simples mortais, parecem sem sentido. Mas não são.
Como disse o New York Times, a situação criada por Morales não é um problema do Brasil, mas boliviano: “Uma coisa é produzir petróleo a $72 o barril e ter acesso a muitos mercados, e outra coisa é produzir gás que tem somente um mercado na região, Brasil...[5]
E eu digo e repito: o Brasil pode comprar gás de outros países, da mesma forma que sempre comprou óleo cru. Mas a Bolívia vai vender para quem? Essa intransigência toda pode ser um tiro no próprio pé. É claro que o nosso governo vai negociar até onde for possível; por diversos motivos. E essas são as cartas do Morales: primeiro, feito às contas, se ainda assim compensar continuar comprando; é óbvio, que a Petrobrás permanecerá lá. Tem, ainda, outros importantes fatores a favor de Evo Morales: a integração latina, tão sonhada por Lula; e o mais importante de todos: esse é um ano de eleição presidencial. Um aumento geral de preços provocado pelo aumento do preço do gás nas regiões sul e sudeste seria prejudicial para as pretensões de Lula.
O Brasil importa diariamente 25 milhões de metros cúbicos de gás – 50% do necessário – e só São Paulo fica com mais de 13%. Podemos importar gás da Argélia, Nigéria ou Trinidad Tobago, mas, obviamente, o preço não seria o mesmo. O “Decreto
Supremo” deu-nos um prazo de 180 dias. E esse prazo termina depois do primeiro turno, mas antes do segundo turno. O Brasil terá de esperar pelas atitudes da Bolívia, porque senão é ela quem irá aos tribunais de arbitragem contra as quebras dos contratos. A situação requer calma e pragmatismo. Já disse isso.
A Bolívia não é o primeiro país a fazer isso. O que fizemos, com o nosso petróleo, não foi muito diferente disso. O Irã e a Arábia Saudita fizeram isso há algumas décadas. O Equador impôs, em Abril, regras que aumentam a participação do Estado no lucro do
petróleo. E no Peru, Ollanta Humala, candidato presidencial, tem defendido um papel mais agressivo do governo no controle do gás e das minas. Parece que Hugo Chávez está fazendo escola.
A Venezuela é uma das maiores fornecedoras de óleo para os Estados Unidos. E, recentemente, já na era Chávez, ela forçou companhias estrangeiras de energia a aceitarem controle do Estado em importantes joint ventures. Realmente, Morales é um bom discípulo. Chávez vive atacando os Estados Unidos. Chamou, em público, na ONU, o George Bush Jr. de “El Diablo”. Negócios são negócios, inimigos a parte. Mais 70% da produção da Venezuela vai para os States.
O que conta contra a Bolívia, é que ela ganha dinheiro nacionalizando, depois ganha dinheiro privatizando. Justamente, porque as empresas nacionalizadas acabam descapitalizadas, por uma série de fatores; principalmente políticos. A Bolívia tem um triste recorde de golpes de Estado e governos corruptos. Ela tem mais, nominalmente, ex-presidentes de que anos de independência.
Vamos supor que a Bolívia se estabilize politicamente doravante, e que a Petrobrás e as outras empresas aceitem os preços e impostos determinados no “Decreto”. Segundo relatório do Banco Mundial, divulgado em abril de 2006, o PIB boliviano em 2004 foi US$ 8,8 bilhões[6], e as exportações corresponderam 30,7% deste total, isto é, aproximadamente, US$ 2,7 bilhões. Se Morales aumentar em 55% os preços do gás (algumas fontes dizem até 61%), e segundo ele, isto produziria um aumento de algo em torno de US$ 600 milhões de novos recursos. Se suas previsões estiverem corretas, isso corresponderia em um aumento anual de mais de 22% nas exportações. Isto é, sem que nenhum outro item da pauta de exportações sofra acréscimo. Com a elevação dos impostos de 50% para 82%, anunciada no “Decreto Supremo” a receita boliviana com hidrocarbonetos se elevaria de US$ 350 milhões para US$ 780 milhões por ano (isto se não houver aumento da demanda brasileira). Somado esses dois valores tem-se US$ 1,380 bilhões. O PIB cresceria 15,68% em um ano. Isso é el milagro boliviano.
 Isto está um pouco distorcido; é verdade. Porque o PIB usado foi computado até 31 de dezembro de 2004, e já se teve todo o ano de 2005. Onde a economia boliviana  cresceu um pouco mais. E além do que estamos há sete meses e meio para acabar o ano, então essa receita toda de US$ 1,380 bilhões não ocorreria no ano de 2006. Mas mesmo assim. Considerando que a economia boliviana tenha crescido 3,5% no ano de 2005 (que é uma média do últimos anos), e fazendo um rateio de US$ 1,380 em 12 meses para 7,5 meses, mesmo assim teria havido um milagro – ou melhor – poderá haver um milagro boliviano, e a economia boliviana terá crescido em 2006, mais ou menos 9,5%. Isto, repito, se nenhum outro setor da economia boliviana crescer, e sem acréscimo da demanda de gás; caso contrário, seguindo a tendência apresentada nesta década, em 2006 o crescimento passará dos 10%.
David Ricardo, economista inglês, há quase 200 anos, com a sua teoria da Vantagem Comparativa, demonstrava que o comércio entre as nações é uma soma positiva, onde todos envolvidos podem ganhar. Então, de que nos serve termos vizinhos pobres?
Vamos entender isso melhor.
 Leia o exemplo de duas cidades, A e B e responda: Onde há mais geração de riqueza? Onde há melhor distribuição de renda? Onde há mais consumo e emprego?
Seja a cidade A, com dez habitantes. Um deles ganhar um milhão por mês, e os demais ganham um salário mínimo cada um. A cidade B também tem dez habitantes, mas cada um ganh cem mil por mês. Qual das duas cidades é mais prósperas? Será que nós nos devemos nos relacionar somente com os países ricos, como advoga o ex-embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima? Nós também nos beneficiaríamos com o desenvolvimento dos bolivianos.
Se a Bolívia esticar demais a corda, ela vai cair e quebrar, e no futuro, depois de alguma dor de cabeça, estaremos comemorando a nossa autossuficiência na produção de gás. Se ela negociar, ganham os dois países.
Na Era do Conhecimento, a vantagem competitiva desalojou a vantagem comparativa, mas alguns países ainda podem se beneficiar da teoria de Ricardo. A China é um grande exemplo disso; na realidade, ela cresce muito porque tem as duas vantagens, a Bolívia só tem a vantagem comparativa. Deixa ela usar o que ela tem. Vamos torcer para que o chá dos hermanos, seja um dia igual ao chá dos ingleses.
No momento vamos ter de esperar para saber as consequências desse decreto.

Cláudio Nogueira.



[2] Artigo 4o do decreto: “82% para o Estado (18% de royalties e participações, 32% de Imposto Direto aos Hidrocarbonetos, IDH, e 32% através de uma participação adicional para a YPFB), e 18% para as companhias (o que cobre custos de operação, amortização de investimentos e lucros)”.
[3] A construção desse gasoduto começou no governo de FHC, em 1997. Teve início sua operação,parcialmente, em 1999. Sendo completamente operativo desde 2010. Ele vai da cidade de Santa Cruz de la Serra, na Bolívia, até Porto Alegre.
[4] Subsecretário para Assuntos Econômicos e Agrícolas do Departamento de Estado dos EUA, Perspectivas Econômicas, maio de 2004
[5] "It's one thing to produce petroleum at $72 a barrel and have access to many markets, and it's another thing to produce gas that has only one market in the region, Brazil, said Carlos Alberto López, a consultant for foreign oil companies”.
Acrescido ao texto original,em novembro de 2019.
 [6] US$ 40 bilhões em 2018. Um aumento de 355%. 


PS1. Dia 10 de novembro 2019, Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia. Qual foi o seu legado após 13 anos como presidente ?
O resultado é positivo. Reduziu a pobreza e acabou com analfabetismo. Esse último atingiu um dos menores níveis da América do Sul. A Bolívia pela primeira vez na sua história teve um período de estabilidade política e econômica. O ricos de Santa Cruz de La Sierra que tiveram tantos embates com Morales, hoje estão preocupados querendo saber se o período de prosperidade e estabilidade que vem desfrutando vai continuar nesse novo governo.

PS2. Evo Morales não soube parar e deixar a presidência. Em 2016, em consulta popular, por 51,30% dos votos válidos, Morales perdeu o direito concorrer a um terceiro mandato. Mas a Suprema Corte lhe concedeu esse direito e ele concorreu e venceu novamente. 

O que está por trás do sucesso econômico da Bolívia na era Evo Morales?

https://www.google.com/amp/s/www.bbc.com/portuguese/amp/internacional-50088340

Por que a Bolívia não para de crescer enquanto vizinhos enfrentam recessão?

Bolívia lidera pelo sétimo ano consecutivo o crescimento na região