Se o Petróleo é Nosso![1] O
Gás é Deles!
Passado a indignação inicial geral causada pelo
“Decreto Supremo”, por meio do qual Evo Morales nacionalizou a Petrobrás
Bolívia Refinacíon S.A. e todas as fontes de hidrocardonetos da Bolívia; e excluindo-se,
as ações populistas para plateia interna, chamada pela nossa impressa de “pirotécnica”,
com a presença do Exército boliviano nas refinarias, Se boliviano fosse, diria
que ele tomou a decisão certa.
É óbvio que opinião é como umbigo, cada um tem
a sua. Mas há outros aspectos a serem considerados. O primeiro deles é que
Morales está jogando, e como risco e retorno andam juntos, são diretamente
proporcionais, devido ao alto grau de risco envolvido nesse jogo, ou ele deu o
primeiro passo, para a longo prazo, tirar a Bolívia de situação de país mais
pobre da América do Sul, ou ele vai falir a Bolívia de forma que a sua
recuperação vai levar muitas décadas. Aí vai ter muita mão de obra barata para
as indústrias clandestinas de confecções de coreanos em São Paulo. Daquelas que
trabalham 20 bolivianos por metro quadrado, num lugar que cabem cinco, fechados
sem janelas.
É sempre bom lembrar que a Bolívia já havia
tomado essa atitude em duas outras ocasiões: em 1937, quando nacionalizou a
Standard Oil Co. e em 1969, nacionalizando a Gulf Oil. Em ambos casos o
resultado foi desastroso. Por esse motivo, a produção de gás e petróleo foi
privatizada na década de noventa.
Com o Decreto, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales
Bolivianos, YPFB, renasce. Usurpando-se de 51% das ações das empresas Chaco S.A.,
Andina S.A., Transredes S.A., Petrobrás Bolívia Refinación S.A. e Compañia
Logística de Hidrocarburos de Bolívia S.A. E através do artigo 8o
do Decreto, ela se torna uma empresa “transparente, eficiente”.
O decreto usa e abusa de palavras que ninguém
na Bolívia sabe o que significa: definitivo, transparente e eficiente. É a
primeira vez que vejo uma empresa ser eficiente através de decreto.
Talvez, por esse motivo, alguns trabalhadores
tenham protestado contra o decreto, alegando que se as multinacionais deixarem
o país, haverá desemprego.
Talvez Morales esteja blefando, como se
estivesse em uma partida de poker. E a diplomacia brasileira está fazendo a
coisa certa. Apesar dos discursos inflamados da oposição. E ex-embaixadores
saudosistas e de pijamas andarem dizendo que o Brasil não está tomando medidas
duras; e que nós já sabíamos desta situação. Ou seja, tudo isso era previsível,
e mesmo assim caímos nas mãos de Morales. Eu discordo e explico porquê.
Quanto à
previsão de que essa situação poderia ocorrer, isso já era do conhecimento de
todos. Muito antes de Morales ganhar as eleições e tomar posse em 22 de janeiro
deste ano, Jean Paul Prates, na sua coluna “Petróleo Global” no site de O
Globo, já vinha prevendo essa situação desde de junho de 2004. E o próprio
jornal O Globo, de 13 de maio de 2006, informa que a Petrobrás já tinha - e que
não foi feito agora depois do decreto - um plano B. Ou seja, a Petrobrás também
não descartava essa possibilidade. Então, por que ela não tomou nenhuma atitude
antes, e nem o governo está sendo “duro” com Morales agora? Porque assim é que
tem de ser. Quem tem tudo a perder é a Bolívia e não nós. Quem pode se dar
muito mal nessa história é a Bolívia e não o Brasil. A diplomacia brasileira
está fazendo a coisa certa, repito. A próxima pedra só deve ser mexida após a
Bolívia mexer a dela. Ou para continua na mesma analogia, vamos ver primeiro
quais são as cartas que Morales tem. Até agora tudo está como antes. Apesar de
todo pirotecnismo de Morales. Nada mudou.
A Petrobrás é responsável por quase um quinto
do PIB da Bolivia. Investiu lá mais de US$ 1 bilhão até 1997, e ganhou muito
dinheiro na Bolívia. Se depois dos aumentos dos impostos para 82%[2],
como determina o Decreto, e ficar com apenas 18% da produção, a Petrobrás
continuar na Bolívia, é porque ela estava ganhando muito dinheiro. Nesse caso
Evo Morales fez a coisa certa. Mas se a Petrobrás sair do país quem perdeu foi
à Bolívia; e perdeu muito.
Mesmo que a Bolívia receba do hermano Hugo
Chávez ajuda de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, para gerir a
planta da Petrobrás, e explorar o petróleo e o gás, para quem ela vai vender
esse gás? A Venezuela tem uma reserva de gás maior do que a da Bolívia, o
Equador tem gás e é pequeno. O Peru tem gás, e o Chile não tem uma demanda que
possa substituir a do Brasil. A Argentina é autossuficiente em gás desde 1992. Esses
países que cercam a Bolívia não teriam uma demanda igual à do Brasil. A Bolívia
não tem mar e está localizada no meio do altiplano andino, isto é, não tem
estrada, nem uma frota que possa levar o gás a um porto no Pacífico, na costa
do Chile. Mas o mais importante já foi dito: falta comprador. O Brasil tem de
esperar a Bolívia quebrar os contratos, pois se for ele o primeiro a
desobedecer o que foi acordado, como, por exemplo, redução na demanda contratada,
será a Bolívia quem se beneficiará de arbitragem internacional. Portanto, a
diplomacia brasileira não está contaminada pela ideologia, mas está tomando uma
atitude pragmática.
Agora, é muito risco, depois de tudo isso,
ainda, em nome de uma integração sulamericana, gastar-se US$23 bilhões em um
gasoduto mais ampliado, tendo Bolívia e Venezuela como sócios.[3] Talvez
existam interesses outros que fogem a minha compreensão. Muito provavelmente, a
falta da minha capacidade de entendimento seja consequência da minha ignorância
de informações sobre a geopolítica do petróleo e do gás natural, algo como
escreveu Alan Larson[4],
que levam os governantes a tomarem decisões, que para nós, simples mortais,
parecem sem sentido. Mas não são.
Como disse o New York Times, a situação criada
por Morales não é um problema do Brasil, mas boliviano: “Uma coisa é produzir
petróleo a $72 o barril e ter acesso a muitos mercados, e outra coisa é
produzir gás que tem somente um mercado na região, Brasil...[5]”
E eu digo e repito:
o Brasil pode comprar gás de outros países, da mesma forma que sempre comprou
óleo cru. Mas a Bolívia vai vender para quem? Essa intransigência toda pode ser
um tiro no próprio pé. É claro que o nosso governo vai negociar até onde for
possível; por diversos motivos. E essas são as cartas do Morales: primeiro,
feito às contas, se ainda assim compensar continuar comprando; é óbvio, que a
Petrobrás permanecerá lá. Tem, ainda, outros importantes fatores a favor de Evo
Morales: a integração latina, tão sonhada por Lula; e o mais importante de
todos: esse é um ano de eleição presidencial. Um aumento geral de preços
provocado pelo aumento do preço do gás nas regiões sul e sudeste seria
prejudicial para as pretensões de Lula.
O Brasil importa diariamente 25 milhões de
metros cúbicos de gás – 50% do necessário – e só São Paulo fica com mais de
13%. Podemos importar gás da Argélia, Nigéria ou Trinidad Tobago, mas,
obviamente, o preço não seria o mesmo. O “Decreto
Supremo” deu-nos um prazo de 180 dias. E esse prazo termina depois do
primeiro turno, mas antes do segundo turno. O Brasil terá de esperar pelas
atitudes da Bolívia, porque senão é ela quem irá aos tribunais de arbitragem
contra as quebras dos contratos. A situação requer calma e pragmatismo. Já
disse isso.
A Bolívia não é o primeiro país a fazer isso. O
que fizemos, com o nosso petróleo, não foi muito diferente disso. O Irã e a
Arábia Saudita fizeram isso há algumas décadas. O Equador impôs, em Abril,
regras que aumentam a participação do Estado no lucro do
petróleo. E no Peru, Ollanta Humala, candidato presidencial, tem
defendido um papel mais agressivo do governo no controle do gás e das minas.
Parece que Hugo Chávez está fazendo escola.
A Venezuela é uma das maiores fornecedoras de
óleo para os Estados Unidos. E, recentemente, já na era Chávez, ela forçou
companhias estrangeiras de energia a aceitarem controle do Estado em importantes
joint ventures. Realmente, Morales é um bom discípulo. Chávez vive atacando os Estados
Unidos. Chamou, em público, na ONU, o George Bush Jr. de “El Diablo”. Negócios
são negócios, inimigos a parte. Mais 70% da produção da Venezuela vai para os
States.
O que conta contra a Bolívia, é que ela ganha
dinheiro nacionalizando, depois ganha dinheiro privatizando. Justamente, porque
as empresas nacionalizadas acabam descapitalizadas, por uma série de fatores;
principalmente políticos. A Bolívia tem um triste recorde de golpes de Estado e
governos corruptos. Ela tem mais, nominalmente, ex-presidentes de que anos de
independência.
Vamos supor que a Bolívia se estabilize politicamente
doravante, e que a Petrobrás e as outras empresas aceitem os preços e impostos determinados
no “Decreto”. Segundo relatório do Banco Mundial, divulgado em abril de 2006, o
PIB boliviano em 2004 foi US$ 8,8 bilhões[6], e
as exportações corresponderam 30,7% deste total, isto é, aproximadamente, US$
2,7 bilhões. Se Morales aumentar em 55% os preços do gás (algumas fontes dizem
até 61%), e segundo ele, isto produziria um aumento de algo em torno de US$ 600
milhões de novos recursos. Se suas previsões estiverem corretas, isso corresponderia
em um aumento anual de mais de 22% nas exportações. Isto é, sem que nenhum
outro item da pauta de exportações sofra acréscimo. Com a elevação dos impostos
de 50% para 82%, anunciada no “Decreto Supremo” a receita boliviana com hidrocarbonetos
se elevaria de US$ 350 milhões para US$ 780 milhões por ano (isto se não houver
aumento da demanda brasileira). Somado esses dois valores tem-se US$ 1,380
bilhões. O PIB cresceria 15,68% em um ano. Isso é el milagro boliviano.
Isto
está um pouco distorcido; é verdade. Porque o PIB usado foi computado até 31 de
dezembro de 2004, e já se teve todo o ano de 2005. Onde a economia boliviana cresceu um pouco mais. E além do que estamos
há sete meses e meio para acabar o ano, então essa receita toda de US$ 1,380
bilhões não ocorreria no ano de 2006. Mas mesmo assim. Considerando que a
economia boliviana tenha crescido 3,5% no ano de 2005 (que é uma média do
últimos anos), e fazendo um rateio de US$ 1,380 em 12 meses para 7,5 meses,
mesmo assim teria havido um milagro –
ou melhor – poderá haver um milagro boliviano,
e a economia boliviana terá crescido em 2006, mais ou menos 9,5%. Isto, repito,
se nenhum outro setor da economia boliviana crescer, e sem acréscimo da demanda
de gás; caso contrário, seguindo a tendência apresentada nesta década, em 2006
o crescimento passará dos 10%.
David Ricardo, economista inglês, há quase 200
anos, com a sua teoria da Vantagem Comparativa, demonstrava que o comércio
entre as nações é uma soma positiva, onde todos envolvidos podem ganhar. Então,
de que nos serve termos vizinhos pobres?
Vamos entender isso melhor.
Leia o
exemplo de duas cidades, A e B e responda: Onde há mais geração de riqueza?
Onde há melhor distribuição de renda? Onde há mais consumo e emprego?
Seja a cidade A, com dez habitantes. Um deles
ganhar um milhão por mês, e os demais ganham um salário mínimo cada um. A
cidade B também tem dez habitantes, mas cada um ganh cem mil por mês. Qual das
duas cidades é mais prósperas? Será que nós nos devemos nos relacionar somente com os países ricos, como
advoga o ex-embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima? Nós também nos
beneficiaríamos com o desenvolvimento dos bolivianos.
Se a Bolívia esticar demais a corda, ela vai
cair e quebrar, e no futuro, depois de alguma dor de cabeça, estaremos comemorando
a nossa autossuficiência na produção de gás. Se ela negociar, ganham os dois
países.
Na Era do Conhecimento, a vantagem competitiva
desalojou a vantagem comparativa, mas alguns países ainda podem se beneficiar da
teoria de Ricardo. A China é um grande exemplo disso; na realidade, ela cresce
muito porque tem as duas vantagens, a Bolívia só tem a vantagem comparativa.
Deixa ela usar o que ela tem. Vamos torcer para que o chá dos hermanos, seja um
dia igual ao chá dos ingleses.
No momento vamos ter de esperar para saber as consequências
desse decreto.
Cláudio Nogueira.
[2] Artigo 4o do decreto: “82%
para o Estado (18% de royalties e participações, 32% de Imposto Direto
aos Hidrocarbonetos, IDH, e 32% através de uma participação adicional para a
YPFB), e 18% para as companhias (o que cobre custos de operação, amortização de
investimentos e lucros)”.
[3] A construção desse gasoduto começou no governo de FHC, em 1997. Teve início sua operação,parcialmente, em 1999. Sendo completamente operativo desde
2010. Ele vai da cidade de Santa Cruz de la Serra, na Bolívia, até Porto
Alegre.
[4] Subsecretário
para Assuntos Econômicos e Agrícolas do Departamento de Estado dos EUA, Perspectivas
Econômicas, maio de 2004
[5] "It's one thing to produce petroleum
at $72 a barrel and have access to many markets, and it's another thing to
produce gas that has only one market in the region, Brazil, said Carlos Alberto
López, a consultant for foreign oil companies”.
Acrescido ao texto original,em novembro de 2019.
PS1. Dia
10 de novembro 2019, Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia. Qual foi o
seu legado após 13 anos como presidente ?
O
resultado é positivo. Reduziu a pobreza e acabou com analfabetismo. Esse último
atingiu um dos menores níveis da América do Sul. A Bolívia pela primeira vez na
sua história teve um período de estabilidade política e econômica. O ricos de
Santa Cruz de La Sierra que tiveram tantos embates com Morales, hoje estão
preocupados querendo saber se o período de prosperidade e estabilidade que
vem desfrutando vai continuar nesse novo governo.
PS2. Evo
Morales não soube parar e deixar a presidência. Em 2016, em consulta popular,
por 51,30% dos votos válidos, Morales perdeu o direito concorrer a um terceiro
mandato. Mas a Suprema Corte lhe concedeu esse direito e ele concorreu e venceu
novamente.
O que está por trás do sucesso econômico da Bolívia na era Evo Morales?
https://www.google.com/amp/s/www.bbc.com/portuguese/amp/internacional-50088340
Por que a Bolívia não para de crescer enquanto vizinhos enfrentam recessão?
Bolívia lidera pelo sétimo ano consecutivo o crescimento na região
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