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sábado, 23 de março de 2019

O Pai, o Filho, o Bispo e Eu

A Missa no Barco.

 Navegávamos pelo rio Solimões; era sábado, 22 de julho de 1978. Saímos de Manaus com destino a Coari. Estávamos indo para a ordenação episcopal de Gutemberg Freire Régis, padre redentorista (CSsR), que após quatro anos, desde a sua escolha, finalmente seria sagrado bispo prelado de Coari. Iria suceder a Dom Mário (Robert) Emmert Anglim, missionário americano naturalizado brasileiro, primeiro prelado de Coari, que havia morrido há cinco anos.

Eu tinha dezenove anos. Todos os outros passageiros tinham mais que o dobro da minha idade; a bordo vários leigos e muitos religiosos. Eu estava ali graças a dona Edina Freire, "secretaria-em-chefe" da paróquia de Nossa Senhora Aparecida, conduzida pelos padres da Congregação do Santíssimo Redentor, sede da vice-província de Manaus. Eles tinham paróquias em Manaus (5), Manacapuru, Anamã, Anori, Codajás e Coari,  no Amazonas; e em Belém, no Pará.

A bordo tinha um padre muito simpático com quem conversei algumas horas. E em determinado momento de nossa conversa, ele lhe disse: estou ouvindo que na semana que vem vai ser a sagração do novo bispo de Itacoatiara. Ele comentou: "Sou eu e você está convidado". 

Era o padre Jorge Eduardo (George Edward) Marskell, canadense, padre da Sociedade de Scarboro para as  Missões Estrangeiras, SFM. Foi bispo prelado de Itacoatiara de 30 julho de 1978 até sua morte em 2 de julho de 1998. Ambos seriam os segundos prelados de suas respectivas prelazias.

Devido a minha pouca idade, na hora das refeições, eu ficava, num canto, recolhido a minha insignificância. Só me aproximava da mesa, que as pessoas se serviam, e procurava um lugar para me sentar, quando todos já estavam almoçando. Percebendo que corria o risco de ficar com fome, dona Teresa Paixão me adotou. Ela servia um prato e me entregava. Acertava com precisão o tamanho do meu apetite. Nunca me esqueci disto; e após a sua morte, tento retribuir a gentileza rezando por ela.

À noite, escuridão total. Só as luzes do barco na imensidão da selva amazônica. Nada de luzes da cidade ofuscando a visão. Era deslumbrante olhar para o céu e ver trilhões de estrelas. O barco correndo ofegante, subindo o rio amarelo, cercado de verde por todos os lados. Ia margeando a mata para fugir da correnteza mais forte no meio do rio. Por isso o caminho de ida, subindo, era mais longo e muito mais demorado do que o de volta. E quando o Solimões se encontra com as águas um pouco mais escuras do rio Purus forma-se um mundão de água, com direito a linha do horizonte, como se no mar estivéssemos. Os dois correm juntos por alguns quilômetros sem se misturarem. Depois de ter criado aquilo, Deus viu que isso era bonito.

Acordar num (meio) ambiente assim dava-nos uma paz e a noção da nossa pequenez diante da exuberância da obra do Criador. O dia começara com o café, seguido pela missa celebrada por D. Tomás Guilherme (Thomas William) Murphy, ex-missionário americano redentorista que um dia trabalhou na vice-província de Manaus. Naquela data ele era bispo auxiliar de Salvador, Bahia. Havia sido o primeiro bispo de Juazeiro, de 1962 a 1973, também na Bahia. 

O evangelho do dia, era o mesmo deste sábado, 23 de março de 2019. Na hora da homilia, ele pergunta se alguém gostaria de comentar alguma coisa. E num dado momento, vira-se para mim e diz: "Você quer dizer alguma coisa ?" What !? You got to be kidding. Deve estar de brincadeira comigo, eu pensei. Como é que ele espera que eu vá falar no meio desse povo que olha para mim e pensa: "O que é que esse menino está fazendo aqui?" Respondi com vergonha: não.

Por muito tempo pensei nisso. Acreditava que Dom Tomás ao me fazer aquela pergunta pensou: "Esse aí é filho do Brígido. Deve ter o meu nome. Vai dizer alguma coisa interessante." Não. O Thomaz Afonso, uma homenagem, dos meus pais, ao padre-pároco amigo, agora bispo ali na minha frente, e ao santo fundador da Congregação, é o meu irmão. Não sou eu. Por todos esses anos eu fiquei pensando: se não fosse pego de surpresa, o que é que eu diria?

Todos os anos quando ouço o evangelho do Filho Pródigo, lembro-me da missa no barco e da pergunta do bispo. Nos encontramos, novamente, em 1993, quando esteve em Manaus para as comemorações do cinquentenário da chegada na Amazônia dos primeiros padres redentoristas da província redentorista de St. Louis, no Estado de Missouri. D. Tomás Murphy faleceu dois anos depois. Há um processo no Vaticano defendendo a sua beatificação. Hoje, 41 anos depois, aqui vai a minha resposta.

 O Filho Pródigo e o Pai Misericordioso.

O texto é do Evangelho de São Lucas (15, 1-3.11-32), onde Jesus Cristo utiliza-se de uma parábola para, mais uma vez, nos dizer o quanto o Pai é misericordioso. Deus Pai está sempre disposto a nos perdoar. É Ele que nos diz: "Sou eu, eu mesmo, aquele que apaga suas transgressões, por amor de mim, e que não se lembra mais de seus pecados." (Isaías 43:25). Vivo com essa esperança: que ele já não se lembre mais dos meus pecados.

Tudo que precisamos é ter um "coração quebrantado e contrito" (Sl. 51:17); arrependimento verdadeiro e o firme propósito de não repetir o pecado. 

Há várias passagens na Bíblia mostrando a ligação entre o arrependimento e o perdão por meio da misericórdia divina. Foi assim com David, Maria Madalena, São Paulo, o ladrão arrependido, Santo Agostinho e muitos outros. 

Veja a alegria e  a felicidade do Pai pelo filho arrependido: 

"Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. O filho, então, lhe disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa." (Lc 15, 20-24).

Assim é o Senhor. Faz uma grande festa quando nos arrependemos, porque eterna é sua misericórdia. Ele "é compassivo e misericordioso, mui paciente e cheio de amor...Não nos trata conforme os nossos pecados nem nos retribui conforme as nossas iniquidades. Pois como os céus se elevam acima da terra, assim é grande o seu amor para com os que o temem." (Sl 102:8,10,11). 

Essa é a boa nova: a santidade está ao alcance de todos. Independentemente do que tenhamos feito, ela pode começar hoje                          

A revolta do filho mais velho.

"O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. O criado respondeu: ‘É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde’.

Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado’.

Então o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado.” (Lc 15,25-32)

O filho mais velho não entendeu o feito, porque não compreende como funciona o amor do Pai, que se alegra muito mais por um pecador arrependido do que noventa e nove justos que não precisam arrepender-se. 

Então Jesus lhes contou esta parábola (Lucas 15, 3-7):

"Qual de vocês que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la?  E quando a encontra, coloca-a alegremente nos ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus amigos e vizinhos e diz: 'Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha perdida'. Eu digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam arrepender-se."

 O filho mais velho não entendeu a misericórdia do Pai. Quem é mais santo: São Pedro ou São Paulo? O primeiro estava com Cristo desde o início e o segundo perseguia os cristãos e estava presente no martírio de santo Estevão. Quem é mais santo: Santa Teresa de Calcutá ou Santo Agostinho, que precisou de muita oração de Santa Mônica para abandonar a vida errada que tinha ?

Essa é a boa nova: a santidade pode começar hoje; independente do que fizemos até agora. Independente de quando decidimos aderir ao projeto de Deus. Não é quando aderimos, mas a intensidade com que fizemos a adesão. Antiguidade é posto somente na carreira militar, não na misericórdia divina.

E é isso que Jesus queria nos dizer quando nos contou a parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus, 20, 1-15): "Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha..." Trabalharam horas diferentes; uns bem mais que os outros, mas todos foram remunerados igualmente.” 

O pai poderia ter perguntado ao filho mais velho: "Não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Porventura vês com maus olhos que eu seja  bom." (Mateus, 20:15)

A parábola do Filho Pródigo ou parábola da Misericórdia Divina nos enche de esperança e nos informa o tamanho da alegria no coração de Deus quando nos arrependemos dos nossos pecados; e quão grande é a sua misericórdia. Isso nos traz uma esperança muito grande.

Uma abençoada Quaresma a todos.

 Cláudio Nogueira


PS1. Dom Jorge Eduardo (George Edward) Marskell teve uma atuação muito expressiva com respeito as questões indígenas e de terras na Amazônia. Sendo por isso agraciado, quando vice-presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com o "Prêmio Nobel Alternativo", em Estocolmo, Suécia, concedido à CPT e  ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, pela Fundação Right Livelihood Awards."

 PS2. Meu pai, Brígido Nogueira, era oblata redentorista.