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terça-feira, 15 de abril de 2025

Alguém Precisa Apresentar David Ricardo a Donald Trump.

 

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou no mês passado guerra aberta ao livre comércio. Sob o lema "America First", ele iniciou uma série de medidas protecionistas que ficaram conhecidas como o "Tarifaço de Trump". A mais emblemática delas foi o acirramento da guerra comercial com a China, que envolveu a imposição de tarifas sobre centenas de bilhões de dólares em produtos chineses importados.

Mas o tarifaço não se limitou à China. Tarifas sobre aço e alumínio atingiram também aliados históricos, como a União Europeia, o Canadá e o México. O governo justificava as medidas com base em segurança nacional ou alegações de concorrência desleal, mas o resultado foi uma escalada de retaliações e uma perturbação nas cadeias globais de suprimento. O tarifaço abrangeu dezenas de países, incluindo tanto rivais estratégicos quanto aliados históricos dos Estados Unidos, como Israel. Trump pensou: "Amigos, amigos... negócios à parte.

O objetivo declarado era reduzir o déficit comercial dos EUA, proteger indústrias nacionais e forçar empresas estrangeiras a trazer empregos de volta para o território americano.
Não há nada de errado com esse objetivo. O ponto crítico está mesmo no método adotado para atingi-lo.

O "pai da criança", segundo a imprensa, é o economista e assessor de Trump, Peter Navarro, que tem uma visão fortemente protecionista e nacionalista da economia — algo bem fora do mainstream acadêmico. Ele escreveu livros como Death by China, ou Morte pela China, em que acusa os chineses de práticas desleais que estariam destruindo a indústria americana, roubando empregos e representando uma ameaça econômica e até militar aos EUA.

Ou seja, isso é música para os ouvidos de Trump.

Mas afinal, quem é esse David Ricardo — e por que Trump deveria conhecê-lo?

David Ricardo foi um economista britânico do século XIX, cujas ideias continuam mais vivas do que muito plano econômico moderno. Ele é o pai da teoria das vantagens comparativas, um conceito que explica por que até países menos eficientes em tudo ainda se beneficiam ao entrar no jogo do comércio internacional.

Ricardo provou que o comércio entre nações não é um jogo de "ganha-perde", mas sim um jogo em que todos ganham. Cada país deveria se especializar naquilo que faz relativamente melhor — ou menos pior — e trocar com os outros. Todo mundo sai ganhando com mais eficiência, produtividade e bens mais baratos. Simples assim.

Se Trump tivesse lido Ricardo e não ouvido Navarro, talvez pensasse duas vezes antes de sair distribuindo tarifa pra todo lado como se fosse brinde de campanha.

Vou dar um exemplo com valores hipotéticos. Se o importador americano pode comprar uma camisa feita em Bangladesh por US$ 2,00, por que ele fabricaria nos Estados Unidos a um custo unitário de US$ 10,00? A camisa de Bangladesh, que tem um custo muito mais baixo, permite que o americano gaste os US$ 8,00 a mais economizados em outro produto ou serviço — seja em educação, saúde, ou até mesmo em mais camisas de outros lugares.

Outro exemplo clássico de Ricardo é o caso do vinho e do tecido. Imagine que Portugal é super eficiente na produção de vinho e na fabricação de tecido, enquanto a Inglaterra é excelente na produção de tecido, mas apenas razoável no vinho. Em vez de cada país tentar ser autossuficiente em tudo, Ricardo sugeriu que a Inglaterra se especializasse na produção de tecido e comprasse vinho de Portugal, e vice-versa. Isso soma positiva para ambos, pois cada um se concentra no que faz de melhor.

Em termos mais modernos, imagine que o Brasil é muito bom em produzir soja, mas o Japão tem uma grande vantagem na fabricação de chips eletrônicos. Ao invés de ambos se esforçarem para produzir tudo sozinho, o Brasil poderia exportar soja para o Japão, enquanto o Japão venderia seus chips para o Brasil. O que todos ganham? Maior eficiência, menores custos, mais recursos para investir em outras áreas da economia e produtos mais baratos para o consumidor.

Se Trump tivesse absorvido essas ideias, talvez ele visse o comércio internacional mais como uma cooperação do que uma ameaça.


    

Vamos pegar um caso concreto: o comércio entre Estados Unidos e China, mas o que vamos ver nesse exemplo serve para todos os países que têm um superávit comercial com os Estados Unidos. A China exporta US$ 450 bilhões para os Estados Unidos, e importa US$ 170 bilhões. Isso produz um déficit contra os EUA de US$ 280 bilhões.

O que Trump deseja é reduzir esse déficit. E isso é justo da parte dele. Aparentemente, nesse comércio, a China — e qualquer país que tenha um superávit com os Estados Unidos — está levando vantagem, “está roubando e sendo desleal com a América”, como alegou Mr. Trump. Mas será mesmo? A teoria da vantagem comparativa não se aplica mais nos dias atuais?

Vamos ver se isso é mesmo desvantagem. Algumas coisas devem ser lembradas:

  1. Foi o consumidor americano quem optou livremente pela compra de produtos chineses. Com certeza, isso ocorreu por não existirem similares nacionais ou porque os fabricados nos Estados Unidos são mais caros. Devem agradecer por ter essa opção.
  2. O poder aquisitivo do americano é alto; por isso ele compra muito. E é exatamente porque o salário médio americano é alto, que a mão-de-obra é cara; muito mais cara do que na China e em muitos países do mundo. Isso inviabiliza a produção de muitos produtos nos Estados Unidos. Esse é o motivo pelo qual muitas empresas americanas produzem no exterior e não na América.

3.     O dólar é uma moeda forte. O que torna a compra de produtos americanos por outros ainda mais cara.. Além disso, os Estados Unidos têm a vantagem única de produzir a moeda de reserva global, o dólar. Isso permite que financiem déficits comerciais com relativa tranquilidade, o que não é possível para a maioria dos países. Ou seja, um déficit na balança comercial não impede necessariamente que o PIB cresça - como de fato cresceu durante boa parte dos anos de globalização acelerada.

  1. A China e outros países podem comprar menos dos Estados Unidos porque encontraram produtos que necessitam mais baratos em outros lugares, ou porque não têm dinheiro para comprar tudo o que gostariam. O comércio entre os EUA e a China é mais complexo do que simplesmente uma questão de “preço”. O comércio com a China envolve não só bens de consumo, mas também matérias-primas, eletrônicos e outros produtos intermediários que são vitais para a cadeia de suprimento global. 

É sempre bom lembrar que o comércio internacional é multifacetado e envolve não apenas aspectos econômicos, mas também geopolíticos, tecnológicos e sociais. As soluções unilaterais de tarifa podem, de fato, prejudicar a economia americana em muitas áreas, apesar de uma redução no déficit comercial. Com o aumento das tarifas, confirma o que David Ricardo previu, no sentido oposto. Ela vai produzir um aumento do preço final ao consumidor americano, no que deverá reduzir a demanda, provocando desemprego na China. Ou seja, ambos os lados saem perdendo.

Aliás, o próprio Trump já percebeu que não é tão simples quanto parece. Quando anunciou tarifas sobre produtos chineses, incluiu na lista os smartphones — o que atingiria diretamente a Apple, uma das maiores empresas americanas. Mas, diante da possibilidade de aumento de preços para o consumidor final e de impactos negativos nas ações da empresa (e na economia como um todo), ele voltou atrás e retirou os iPhones da lista de produtos tarifados.

O motivo é simples: quem paga a conta das tarifas não é a China — é o consumidor americano. O aumento do custo de importação acabaria sendo repassado para o preço final. E quando o preço sobe, a demanda cai. Quando a demanda cai, as empresas vendem menos, lucram menos e, em última instância, contratam menos ou até demitem. Um tiro no próprio pé porque afeta empresas americanas. Por exemplo, tão logo foi anunciado o tarifaço, o valor de mercado da Apple diminuiu US$ 75 bilhões em apenas dois dias.

    E a Apple não foi um caso isolado. Outras empresas americanas também sentiram o baque do tarifaço. A Harley-Davidson, símbolo do estilo de vida americano, foi atingida pelas tarifas retaliatórias da União Europeia e anunciou que transferiria parte da produção para fora dos EUA — justamente o oposto do que Trump desejava. A Boeing, maior exportadora dos Estados Unidos, viu suas encomendas ameaçadas após a China retaliar tarifas com restrições a produtos americanos, inclusive aviões. E os produtores rurais, especialmente os de soja, milho e carne, amargaram prejuízos bilionários quando a China suspendeu ou reduziu suas compras. Os estoques cresceram, os preços despencaram — e a base eleitoral rural de Trump começou a sentir no bolso os efeitos da guerra comercial. Ou seja, o tiro não só saiu pela culatra, como acertou aliados e gigantes da economia americana.

No seu projeto de "Make America Great Again", Trump não poupou nem mesmo aliados. A Tesla, de Elon Musk, também acabou sendo atingida. Com a imposição de tarifas sobre componentes importados da China, os custos de produção da montadora aumentaram significativamente — afinal, muitos dos insumos usados na fabricação dos carros elétricos vinham justamente do país asiático. A Tesla teve que renegociar contratos, rever projeções e lidar com oscilações no mercado financeiro.

 Diante do prejuízo, sobrou para Peter Navarro, o principal conselheiro por trás da estratégia protecionista. Musk, como muitos outros líderes empresariais, não podia criticar diretamente o presidente - então canalizou sua frustração para Navarro, que se tornou o "alvo oficial" da insatisfação de Wall Street e do Vale do Silício.

No fim das contas, talvez alguém realmente precise apresentar David Ricardo a Donald Trump. A teoria das vantagens comparativas não é só uma aula de economia: é uma lição de bom senso. O mundo está mais conectado do que nunca, e políticas comerciais feitas na base da canetada, movidas por instinto nacionalista e desconfiança, podem parecer firmes no palanque — mas custam caro no mercado. Proteger a indústria nacional é legítimo, claro. Mas fazer isso ignorando princípios básicos da economia global é como tentar apagar fogo com gasolina. Ou, como já dizia um velho ditado que nem precisa ser inglês: quem planta tarifa, colhe retaliação.

Mr. Trump, da próxima vez que for mexer com o comércio global, tente conversar com o David Ricardo. Ele já morreu, mas está mais atualizado que certos assessores. Ou assista o vídeo abaixo sobre o que Ronald Reagan, republicano como o senhor, tem a dizer sobre  isso.

 

Cláudio Nogueira                                     


 

 

sábado, 12 de abril de 2025

Por que Caifás Matou Jesus ? Ou... A Profecia de Caifás: atirou no que viu e acertou no que não viu.

 

O Evangelho da manhã deste sábado, 12 de abril de 2025 - véspera de Domingo de Ramos - é o de São João 11, 45-53, que relata a profecia de Caifás sobre a morte de Jesus.

45 Muitos judeus que tinham ido à casa de Maria, e viram o que Jesus fizera, creram nele.
46 Mas alguns deles foram ter com os fariseus e lhes contaram o que Jesus realizara.
47 Então os príncipes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o conselho e disseram
46 Mas alguns deles foram ter com os fariseus e lhes contaram o que Jesus realizara.
47 Então os príncipes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o conselho e disseram [ e pensaram: Basta ! Já chega ! Agora Ele foi longe demais.]: “Que faremos? Este homem faz muitos milagres”.
48 Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e virão os romanos e destruirão a nossa cidade e a nossa nação.”
49 Um deles, chamado Caifás, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: “Vós nada entendeis!
50 Não compreendeis que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça toda a nação?”
51 Ora, ele não disse isso por si mesmo, mas sendo o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação.
52 E não somente pela nação, mas também para reunir na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos.
53 E desde aquele dia resolveram tirar-lhe a vida.
 

    Essa passagem da Bíblia sempre me intrigou. Todas às vezes que eu a ouço, eu penso: por que São João disse que Caifás profetizou?                                                                Nessa manhã, após a missa na igreja de Nossa Senhora de Fátima do Amial, aqui no Porto, decidi tirar essa dúvida com o frei Fernando, O.F.M. Mas fui interrompido por pessoas que aguardavam o frei terminar a missa para se confessarem. 

    O que é profecia, no sentido bíblico ?

Para responder essa pergunta, primeiro é preciso lembrar que quem fazia profecias eram os profetas. Caifás não era um profeta. Na realidade, ele estava muito longe de sê-lo.

Um profeta era alguém chamado por Deus para transmitir mensagens divinas: oráculo do Senhor. Mensagens direcionadas, com fins específicos.

Por conta disso, eu fico pensando, refletindo profundamente, todas as vezes que ouço essa passagem. Nunca entendi muito bem por que São João disse isso. Sem poder contar com a ajuda do frei, vou tentar entendê-la sozinho. Aí é que mora o perigo.

 Quem era Caifás ?

Caifás não era flor que se cheire. Ele era o sumo sacerdote do Sinédrio, o tribunal religioso judaico, indicado pelo governo romano. A sua “profecia” sobre Jesus, em resumo, foi: Ele morrerá porque vamos assassiná-Lo. Profecias desse jeito podem ser concretizadas facilmente, se “profetizadas” por Putins, Netanyahus e outros.

Ele liderou o julgamento ilegal de Jesus (Mateus 26,57-68), acusando-O de blasfêmia por declarar-se Filho de Deus (João 11,49-53). Também alegou “Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e virão os romanos e destruirão a nossa cidade e a nossa nação.”

Essa afirmação vem logo após a ressurreição de Lázaro, um milagre que causou grande alvoroço. Muitos começaram a crer em Jesus por causa desse sinal, e isso preocupou os líderes religiosos, que viram sua autoridade e estabilidade ameaçadas.

O Medo dos Líderes Religiosos

Qual era o medo deles? Jesus estava se tornando extremamente popular entre o povo. Os líderes temiam perder o controle religioso e político. Jesus estava se tornando um líder religioso e denunciou a corrupção no Templo. Isso foi interpretado comum ataque direto à estrutura de poder controlada por Anás e Caifás.



Eles tinham temor da reação romana. A Judeia era uma província do Império Romano. Os romanos toleravam certa autonomia judaica, especialmente religiosa, desde que não houvesse revoltas. Um movimento messiânico, como o que Jesus parecia representar, poderia ser visto como uma ameaça política.

Destruirão a nossa cidade e a nossa nação.” Eles temiam que, se o povo proclamasse Jesus como rei ou Messias (no sentido político), os romanos reagiriam com força, destruindo Jerusalém e o Templo - o centro da identidade judaica.

Essa desculpa para matar Jesus para “salvar a nação” acabou se mostrando um argumento falacioso. Trinta e sete anos depois da morte de Cristo, no ano 70, os romanos realmente destruíram Jerusalém e o Templo, como Jesus havia profetizado (Lucas 19, 43-44).

Essas foram as desculpas usadas para mascarar a verdadeira motivação: a inveja. Ele e outros líderes religiosos sentiam inveja do prestígio crescente de Jesus.

Por que condenar alguém que só fez o bem? Jesus curou vários cegos (Mateus 20,29-34, Marcos 10,46-52, Lucas 18,35-43, Marcos 8,22-26, João 9,1-12 e Mateus 9,27-31) e paralíticos (Mateus 9,1-8, Marcos 2,1-12, Lucas 5,17-26, João 5,1-15, Mateus 12,9-13, Marcos 3,1-6, Lucas 6,6-1, Mateus 8,5-13, Lucas 7,1-10,). O número exato é difícil de se determinar: “Vieram a Ele grandes multidões, trazendo consigo coxos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros, e os colocaram aos seus pés; e Ele os curou.” (Mateus 15,30-31). “E foram ter com Ele no templo cegos e coxos, e Ele os curou.” (Mateus 21,14).

Ele ressuscitou mortos, como o filho da viúva de Naim (Lucas 7,11-17), a filha de Jairo (Marcos 5,35-43) e Lázaro (João 11,1-44). Curou leprosos: “Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados...” (Mateus 11,5; Lucas 7,22). De uma única vez curou dez leprosos (Lucas 17,11-19); depois mais outro (Mateus 8,1-4, Marcos 1,40-45, Lucas 5,12-16). Tocar um leproso era impensável - Jesus quebra barreiras com compaixão.

Ele pregou o amor e mansidão como ninguém jamais havia feito. Numa  época em que vigorava a “lex talionis” ou Lei do Talião ou da retaliação: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé...” (Êxodo 21,24, Levítico 24,20, Deuteronômio 19,21). Disse coisas absurdas para todas as épocas: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus 5,39). E ainda: “Se alguém quiser tirar-te a túnica, dá-lhe também o manto” (Mateus 5,40).

Sua vida foi dedicada à compaixão, à justiça e à misericórdia: “Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor” (Marcos 6:34). “Movido de compaixão, Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: Quero. Seja purificado! (Marcos 1:41)

Pede que amemos o próximo com gestos concretos: dar comida, água, abrigo, a quem precisar (Mateus 25:35,40)

Mesmo no sofrimento extremo, Jesus responde com misericórdia e o perdão: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem.” (Lucas 23:34).

Mesmo assim, foi rejeitado e assassinado. Jesus morreu não por causa de sua vida, mas por causa da inveja, do medo e do orgulho dos que não suportavam sua luz.

Inveja, teu nome é Caifás e Anás, teu sobrenome.

 Os Responsáveis pela Assassinato de Jesus

Quem era Anás? Em João 18,12-24, Jesus é levado primeiro a Anás, ex-sumo sacerdote, antes mesmo de ser apresentado a Caifás. Isso mostra como ele ainda era politicamente influente, mesmo sem o título oficial.

“Levaram-no primeiro a Anás, pois era sogro de Caifás, o sumo sacerdote daquele ano.” (João 18,13)

Anás interrogou Jesus sem autoridade legal, numa espécie de “pré-julgamento” informal. Isso já mostra que o “processo” contra Jesus era, de fato, manipulado desde o começo.

Caifás e Anás são os principais responsáveis pela morte de Jesus. Pilatos declarou: “Eis que vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele crime algum.” (João 19,4). “Tomai-o vós e crucificai-o; quanto a mim, não acho nele culpa.” (João 19,6).

Religião Decadente

A vinda de Jesus, naquele momento da história da humanidade, está intimamente ligada às figuras religiosas, como Caifás, Anás, fariseus, saduceus, mestres e doutores da lei. Foi uma escolha divina profundamente significativa. Era uma época em que apesar da aparência de religiosidade, o coração do povo – e, principalmente, de seus líderes - estava distante de Deus. A religião institucionalizada dos judeus havia se tornado, em muitos aspectos, uma estrutura secularizada, mais preocupada com poder, controle e aparências do que com a essência da fé: o amor a Deus e ao próximo. Jesus veio num tempo de profunda decadência espiritual. Ele veio quando a religião - que deveria conectar o homem a Deus - havia se tornado apenas uma aparência, um sistema, uma estrutura fria e distante do coração do Pai.

Os líderes religiosos da época ocupavam posições de poder e influência; seus corações estavam longe de Deus. O que deveria ser a "igreja" de Israel, a guardiã da aliança, havia se tornado uma instituição vazia, voltada para o controle, o lucro e a aparência. Jesus denunciou essa hipocrisia com palavras fortes:

“Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: belos por fora, mas por dentro cheios de ossos e de toda podridão.”
(Mateus 23,27)

O Templo de Jerusalém, símbolo máximo da fé judaica, era a imagem real da decadência religiosa. Já não era mais um lugar de verdadeira adoração.

“Jesus entrou no templo e expulsou todos os que ali vendiam e compravam. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas, e lhes disse:
‘Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração! Mas vocês estão fazendo dela um covil de ladrões!”
(Mateus 21,12-13).

“Covil de ladrões !?” Jesus viu o que não vimos. Ele sabia o que estava dizendo.

Foi nesse cenário que Jesus surgiu - não como um reformador do sistema religioso, mas como a encarnação do próprio amor e da justiça de Deus. Ele veio trazer uma fé viva, baseada na compaixão, na verdade e na presença do Reino de Deus entre os homens.

“Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim.”
(Mateus 15:8)

Jesus veio justamente porque o coração da religião havia se perdido. Veio para chamar os cansados, os oprimidos, os rejeitados - e oferecer um caminho de reconciliação com Deus, não baseado em aparências ou regras humanas, mas em graça e verdade.

Os fariseus ensinavam a Lei de Moisés, mas não viviam o que pregavam. Disse Jesus: “Fazei, pois, e observai tudo o que eles vos disserem, mas não imiteis as suas ações! Pois eles falam e não fazem.

Atam fardos pesados e insuportáveis e os põem sobre os ombros dos outros, mas eles mesmos não os querem mover sequer com um dedo.” (Mateus 23,3-4)

A fé tornou-se um fardo. O amor a Deus foi substituído por regras. A misericórdia deu lugar à condenação. A justiça, à manipulação. A religião virou política.

Em síntese: Jesus veio para resgatar a essência do relacionamento com Deus, que os fariseus haviam reduzido a ritos vazios. Ele veio para nos dizer o quanto o Pai nos ama, que Ele é bom e  misericordioso. Cristo nos revela um Deus que não está distante, mas que caminha conosco, que acolhe os quebrantados, cura os feridos e convida todos a viver uma fé viva, íntima e transformadora.

... E a profecia de Caifás ?

Aparentemente, este texto tomou um rumo diferente do que foi proposto inicialmente. O meu questionamento era: por que São João disse que Caifás profetizou? Isso me levou a explorar quem era Caifás.

Vamos recapitular ao que deu origem a tudo isso. Disse Caifás: “Vós nada sabeis, nem considerais que nos convém que um só homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação.” (João 11,50). E João comenta: “Ora, ele não disse isso de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação. E não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus que andavam dispersos.” (João 11, 51-52)

Vou tentar encontrar uma explicação para porque São João chamou isso de profecia, para não me importunar mais com essa afirmação. Vou me autoconvencer que ele tem razão. Afinal trata-se do “discípulo que Jesus amava”, o único a estar ao pé da cruz, o único não martirizado e que teve a honra de nos representar a todos como filhos de Maria.

O discurso de Caifás foi político e cínico. Estava buscando a solução do que era um “problema” para os seus interesses. Ele não estava, conscientemente, “profetizando” no sentido de ser movido pelo Espírito de Deus, mas sim racionalizando um assassinato como sendo "necessário" para preservar a segurança nacional. Para ele, Jesus era um risco, um problema a ser resolvido e não o redentor.

Caifás achava que estava salvando Israel de Roma ao matar Jesus. Mas, sem perceber, ele disse a verdade: Jesus de fato morreria pelo povo - não para salvá-los de Roma, mas do pecado. Não apenas por Israel, mas por todos os filhos de Deus em todo e para sempre. 

"Ele  disse isso não como quem sabia o que dizia, mas como instrumento da profecia divina (...) Deus pode falar até mesmo por meio dos ímpios." Santo Agostinho em Tractatus in Ioannem, Trato 49.

Caifás, em sua intenção, não profetizou nada espiritual - ele apenas articulou um plano maquiavélico disfarçado de pragmatismo religioso e político.

“Disse isto não por si mesmo, mas como sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou. (...) Pois como outrora o Espírito falou por meio de Balaão, assim também falou agora por meio de Caifás.” São Tomás de Aquino em  Catena Aurea.

São Tomás de Aquino vê aí uma “profecia involuntária”. Algo parecido com o que acontece com Balaão, “profeta pagão” no Antigo Testamento: um homem que não estava em sintonia com Deus, mas que ainda assim foi usado por Ele para dizer algo verdadeiro (Números 22-24).

Em resumo: São João revela que Deus transformou aquela decisão política em parte do Seu plano de redenção. É uma das ironias mais profundas da Bíblia: o sumo sacerdote que condenou Jesus sem querer declarou a verdade sobre Sua missão.

Será que é por isso que dizem que “Deus escreve certo por meio de linhas tortas ?”

Tenham todos uma abençoada Semana Santa.

 Cláudio Nogueira

PS. Se não tivesse pecadores na igreja do Amial, esse texto não existiria.