O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
declarou no mês passado guerra aberta ao livre comércio. Sob o lema
"America First", ele iniciou uma série de medidas protecionistas que
ficaram conhecidas como o "Tarifaço de Trump". A mais emblemática
delas foi o acirramento da guerra comercial com a China, que envolveu a
imposição de tarifas sobre centenas de bilhões de dólares em produtos chineses
importados.
Mas o tarifaço não se limitou à China. Tarifas sobre
aço e alumínio atingiram também aliados históricos, como a União Europeia, o
Canadá e o México. O governo justificava as medidas com base em segurança
nacional ou alegações de concorrência desleal, mas o resultado foi uma escalada
de retaliações e uma perturbação nas cadeias globais de suprimento. O tarifaço
abrangeu dezenas de países, incluindo tanto rivais estratégicos quanto aliados
históricos dos Estados Unidos, como Israel. Trump pensou:
"Amigos, amigos... negócios à parte.
O objetivo declarado era reduzir o déficit comercial
dos EUA, proteger indústrias nacionais e forçar empresas estrangeiras a trazer
empregos de volta para o território americano.
Não há nada de errado com esse objetivo. O ponto crítico está mesmo no método
adotado para atingi-lo.
O "pai da criança", segundo a imprensa, é o
economista e assessor de Trump, Peter Navarro, que tem uma visão fortemente
protecionista e nacionalista da economia — algo bem fora do mainstream
acadêmico. Ele escreveu livros como Death by China, ou Morte pela
China, em que acusa os chineses de práticas desleais que estariam
destruindo a indústria americana, roubando empregos e representando uma ameaça
econômica e até militar aos EUA.
Ou seja, isso é música para os ouvidos de Trump.
Mas afinal, quem é esse David Ricardo — e por que
Trump deveria conhecê-lo?
David Ricardo foi um economista britânico do século
XIX, cujas ideias continuam mais vivas do que muito plano econômico moderno.
Ele é o pai da teoria das vantagens comparativas, um conceito que
explica por que até países menos eficientes em tudo ainda se beneficiam ao
entrar no jogo do comércio internacional.
Ricardo provou que o comércio entre nações não é um
jogo de "ganha-perde", mas sim um jogo em que todos ganham. Cada país
deveria se especializar naquilo que faz relativamente melhor — ou menos pior —
e trocar com os outros. Todo mundo sai ganhando com mais eficiência,
produtividade e bens mais baratos. Simples assim.
Se Trump tivesse lido Ricardo e não ouvido Navarro,
talvez pensasse duas vezes antes de sair distribuindo tarifa pra todo lado como
se fosse brinde de campanha.
Vou dar um exemplo com valores hipotéticos. Se o
importador americano pode comprar uma camisa feita em Bangladesh por US$ 2,00,
por que ele fabricaria nos Estados Unidos a um custo unitário de US$ 10,00? A
camisa de Bangladesh, que tem um custo muito mais baixo, permite que o
americano gaste os US$ 8,00 a mais economizados em outro produto ou serviço —
seja em educação, saúde, ou até mesmo em mais camisas de outros lugares.
Outro exemplo clássico de Ricardo é o caso do vinho e
do tecido. Imagine que Portugal é super eficiente na produção de vinho e na
fabricação de tecido, enquanto a Inglaterra é excelente na produção de tecido,
mas apenas razoável no vinho. Em vez de cada país tentar ser autossuficiente em
tudo, Ricardo sugeriu que a Inglaterra se especializasse na produção de tecido
e comprasse vinho de Portugal, e vice-versa. Isso soma positiva para ambos,
pois cada um se concentra no que faz de melhor.
Em termos mais modernos, imagine que o Brasil é muito
bom em produzir soja, mas o Japão tem uma grande vantagem na fabricação de chips
eletrônicos. Ao invés de ambos se esforçarem para produzir tudo sozinho, o
Brasil poderia exportar soja para o Japão, enquanto o Japão venderia seus chips
para o Brasil. O que todos ganham? Maior eficiência, menores custos, mais
recursos para investir em outras áreas da economia e produtos mais baratos para
o consumidor.
Se Trump tivesse absorvido essas ideias, talvez ele
visse o comércio internacional mais como uma cooperação do que uma ameaça.
Vamos pegar um caso concreto: o comércio entre Estados
Unidos e China, mas o que vamos ver nesse exemplo serve para todos os países
que têm um superávit comercial com os Estados Unidos. A China exporta US$ 450
bilhões para os Estados Unidos, e importa US$ 170 bilhões. Isso produz um
déficit contra os EUA de US$ 280 bilhões.
O que Trump deseja é reduzir esse déficit. E isso é
justo da parte dele. Aparentemente, nesse comércio, a China — e qualquer país
que tenha um superávit com os Estados Unidos — está levando vantagem, “está
roubando e sendo desleal com a América”, como alegou Mr. Trump. Mas será mesmo?
A teoria da vantagem comparativa não se aplica mais nos dias atuais?
Vamos ver se isso é mesmo desvantagem. Algumas coisas
devem ser lembradas:
- Foi o consumidor americano quem optou livremente pela compra de
produtos chineses. Com certeza, isso ocorreu por não existirem similares
nacionais ou porque os fabricados nos Estados Unidos são mais caros. Devem
agradecer por ter essa opção.
- O poder aquisitivo do americano é alto; por isso ele compra muito.
E é exatamente porque o salário médio americano é alto, que a mão-de-obra é
cara; muito mais cara do que na China e em muitos países do mundo. Isso inviabiliza
a produção de muitos produtos nos Estados Unidos. Esse é o motivo pelo
qual muitas empresas americanas produzem no exterior e não na América.
3. O dólar é uma moeda forte. O que torna a compra de produtos americanos por outros ainda mais cara.. Além disso, os Estados Unidos têm a vantagem única de produzir a moeda de reserva global, o dólar. Isso permite que financiem déficits comerciais com relativa tranquilidade, o que não é possível para a maioria dos países. Ou seja, um déficit na balança comercial não impede necessariamente que o PIB cresça - como de fato cresceu durante boa parte dos anos de globalização acelerada.
- A China e outros países podem comprar menos dos Estados Unidos porque encontraram produtos que necessitam mais baratos em outros lugares, ou porque não têm dinheiro para comprar tudo o que gostariam. O comércio entre os EUA e a China é mais complexo do que simplesmente uma questão de “preço”. O comércio com a China envolve não só bens de consumo, mas também matérias-primas, eletrônicos e outros produtos intermediários que são vitais para a cadeia de suprimento global.
É sempre bom lembrar que o comércio internacional é
multifacetado e envolve não apenas aspectos econômicos, mas também
geopolíticos, tecnológicos e sociais. As soluções unilaterais de tarifa podem,
de fato, prejudicar a economia americana em muitas áreas, apesar de uma redução
no déficit comercial. Com o aumento das tarifas, confirma o que David Ricardo
previu, no sentido oposto. Ela vai produzir um aumento do preço final ao
consumidor americano, no que deverá reduzir a demanda, provocando desemprego na
China. Ou seja, ambos os lados saem perdendo.
Aliás, o próprio Trump
já percebeu que não é tão simples quanto parece. Quando anunciou tarifas sobre
produtos chineses, incluiu na lista os smartphones — o que atingiria
diretamente a Apple, uma das maiores empresas americanas. Mas, diante da
possibilidade de aumento de preços para o consumidor final e de impactos
negativos nas ações da empresa (e na economia como um todo), ele voltou atrás e
retirou os iPhones da lista de produtos tarifados.
O motivo é simples: quem
paga a conta das tarifas não é a China — é o consumidor americano. O aumento do
custo de importação acabaria sendo repassado para o preço final. E quando o
preço sobe, a demanda cai. Quando a demanda cai, as empresas vendem menos,
lucram menos e, em última instância, contratam menos ou até demitem. Um tiro no
próprio pé porque afeta empresas americanas. Por exemplo, tão logo foi
anunciado o tarifaço, o valor de mercado da Apple diminuiu US$ 75 bilhões em
apenas dois dias.
E a Apple não foi um
caso isolado. Outras empresas americanas também sentiram o baque do tarifaço. A
Harley-Davidson, símbolo do estilo de vida americano, foi atingida pelas
tarifas retaliatórias da União Europeia e anunciou que transferiria parte da
produção para fora dos EUA — justamente o oposto do que Trump desejava. A
Boeing, maior exportadora dos Estados Unidos, viu suas encomendas ameaçadas
após a China retaliar tarifas com restrições a produtos americanos, inclusive
aviões. E os produtores rurais, especialmente os de soja, milho e carne,
amargaram prejuízos bilionários quando a China suspendeu ou reduziu suas
compras. Os estoques cresceram, os preços despencaram — e a base eleitoral
rural de Trump começou a sentir no bolso os efeitos da guerra comercial. Ou
seja, o tiro não só saiu pela culatra, como acertou aliados e gigantes da
economia americana.
No seu projeto de
"Make America Great Again", Trump não poupou nem mesmo aliados. A Tesla,
de Elon Musk, também acabou sendo atingida. Com a imposição de tarifas sobre
componentes importados da China, os custos de produção da montadora aumentaram
significativamente — afinal, muitos dos insumos usados na fabricação dos carros
elétricos vinham justamente do país asiático. A Tesla teve que renegociar
contratos, rever projeções e lidar com oscilações no mercado financeiro.
Diante do prejuízo,
sobrou para Peter Navarro, o principal conselheiro por trás da estratégia
protecionista. Musk, como muitos outros líderes empresariais, não podia
criticar diretamente o presidente - então canalizou sua frustração para
Navarro, que se tornou o "alvo oficial" da insatisfação de Wall
Street e do Vale do Silício.
No fim das contas,
talvez alguém realmente precise apresentar David Ricardo a Donald Trump. A
teoria das vantagens comparativas não é só uma aula de economia: é uma lição de
bom senso. O mundo está mais conectado do que nunca, e políticas comerciais
feitas na base da canetada, movidas por instinto nacionalista e desconfiança,
podem parecer firmes no palanque — mas custam caro no mercado. Proteger a
indústria nacional é legítimo, claro. Mas fazer isso ignorando princípios
básicos da economia global é como tentar apagar fogo com gasolina. Ou, como já
dizia um velho ditado que nem precisa ser inglês: quem planta tarifa, colhe
retaliação.
Mr. Trump, da próxima
vez que for mexer com o comércio global, tente conversar com o David Ricardo.
Ele já morreu, mas está mais atualizado que certos assessores. Ou assista o vídeo abaixo sobre o que Ronald Reagan, republicano como o senhor, tem a dizer sobre isso.
Cláudio Nogueira