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domingo, 26 de dezembro de 2010

OS 15 ANOS DE GLÓRIA

OS 15 ANOS DE GLÓRIA
José Ribamar Bessa Freire
26/12/2010 - Diário do Amazonas
ou http://www.taquiprati.com.br

Quem foi a primeira amazonense que usou uma garrafa térmica? Se essa pergunta cair numa prova do vestibular, marque com um “x” a resposta certa: Cleomar dos Anjos Feitosa. Isso mesmo! Foi a Cleomar. Ninguém me contou. Eu vi. Não apenas vi. Usufrui. Aconteceu em outubro de 1955, num piquenique no balneário das Pedreiras, no igarapé do Mindu, em Manaus. Era uma garrafa alaranjada, de um litro, marca Alladin, made in USA, recém trazida dos Estados Unidos pelo padre redentorista Thomé Morrissey.

Consciente do momento histórico que vivia, Cleomar ergueu o recipiente térmico como um troféu, num gesto que Bellini faria anos depois com a taça Jules Rimet. Sua mão direita ligeiramente aberta deixou o dedo mindinho flutuando no ar, exibindo uma unha pintada de vermelho vivo. Confesso que jamais presenciei nada tão chique em minha vida. Diante de um público embasbacado, ela desenroscou a tampa de rolha de cortiça, serviu um suco de taperebá que eu, menino de oito anos, bebi, e declarou à posteridade:

- É impressionante! Conserva o café quente e o suco gelado. O que é quente fica quente, o que é frio, fica frio.

Parece banal, mas não é. O Brasil, até então, não produzia garrafa térmica e ninguém sabia que diabo era aquilo. Era novidade, raridade. Seu uso constituía prova de refinamento e sofisticação. Nonato Garcia em sua coluna social Nogar Tudo Vê Tudo Informa chegou a registrar a existência de algumas delas, importadas, em algumas mansões manauaras. A geladeira Gelomatic gelava, o fogão Rey esquentava, mas uma geringonça portátil que tinha a dupla função, só mesmo vendo pra crer. Tinha de ser coisa dos States. Era a modernidade nos tocando de perto.

A modernidade

Nem sei se a própria protagonista lembra o fato. Mas eu lembro inclusive a data por causa de duas mulheres – uma miss e uma cantora - para quem o ano de 1955 foi decisivo. Acontece que nesse dia, nas Pedreiras, todo mundo só falava da renhida disputa na qual Anette Stone fora eleita Miss Amazonas, derrotando Auxiliadora Câmara. Além disso, as irmãs Feitosa passaram o piquenique cantando músicas da Carmen Miranda, falecida em agosto daquele ano, duas delas inesquecíveis:

- Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim. Ou ainda: - Kalu, Kalu, tira o verde desses óio de riba deu.

Portanto, indubitavelmente, o ano foi 1955. Quanto ao mês era, indubitavelmente, outubro, mês das missões, quando o pessoal da Quermesse de Aparecida realizava seu piquenique anual. O uso aqui de dois “indubitavelmente” é para não deixar qualquer dúvida aos incrédulos. Testemunharam o fato: Jiddu Rebouças, Rosa Magaly, Angélica Arruda, Maria do Carmo Toledo, Odaísa Braga, Amazonina, Graciema, Georgina, Edina Soares e Glória Nogueira, entre outros.

Por que agora estou lembrando essa história? Porque nessa terça-feira, 28 de dezembro, uma das protagonistas – Maria da Glória Queiroz Nogueira – completa 80 anos. Amanhã, dia 27, às 19h30 haverá uma missa na Igreja de Aparecida e na terça-feira uma recepção no Elegance Festas e Convenções, na Rua Salvador, em Adrianópolis. E essa história serve para ilustrar as relações da Glória com os amigos, com os vizinhos e com a modernidade.

Glória é Glória e seus amigos. Com eles teceu relações sólidas de afeto. No livro de poesia que será lançado no aniversário, ela canta esses amigos. Lá estão dona Rosa Feitosa e as filhas – Lucimar, Dagmar, Cleomar e Dulcimar. No dia de Natal – lembra Glória – depois da missa do galo elas desciam a Xavier e entravam no Beco da Indústria cantando pelas ruas, sempre cantando, músicas natalinas, “unidos na mesma fé, o natal comemorando”. Era um espetáculo. Cleomar, que é lembrada aqui carinhosamente, continua atuando ainda hoje com seu coral de mil vozes.

Netos e bisnetos

Mas Glória é também Glória e seus filhos, Glória e seus netos, Glória e seus bisnetos. Quantos são? Segundo o último recenseamento do IBGE, Glória teve 19 filhos dos quais 16 foram gerados no seu ventre e três adotados, sendo doze mulheres e sete homens. Com exceção de uma falecida, todos casaram, tiverem filhos e deram-lhe 50 netos e 12 bisnetos. Vários deles estão presentes também no livro

O livro começa com uma declaração de amor a Brígido Nogueira, um alfaiate de Santarém que migrou pra Manaus, com quem Glória se casou em 1951. Era uma família modesta, que conseguiu com muito esforço educar seus filhos, todos com curso universitário. Um deles, Cláudio, que estudou no Japão e no Canadá, onde Glória foi visitá-lo, dá seu depoimento no livro, lembrando o pai e a mãe:

- “Com vocês aprendemos a lutar, a competir, mas de forma honesta. Nos ensinaram muitas outras coisas, que para alguns são virtudes, mas aprendemos que são obrigações. Não ensinaram ninguém a ser “esperto” e “nem a se dar bem”, mas que é necessário esforço, estudo e dedicação para obtermos o que almejamos. De vocês, herdamos o que é mais importante, a fé em Cristo Jesus”.

O depoimento de uma das netas merece o registro aqui. Neyla, que deu duas bisnetas a Glória, ficou surpresa num encontro recente com a avó que se preparava para a festa de 80 anos: “Minha avó nunca usou adornos de nenhum tipo, nem batom, nem qualquer outro tipo de maquiagem, mas na quinta-feira passada quando fui almoçar com ela tomei um baita susto!!! A ‘velhinha’ tinha acabado de furar a orelha!! E quando manifestei minha surpresa, ela respondeu que a ocasião pedia, pois já que não tinha tido festa de 15 anos, a festa dos 80 anos seria seu début e ela precisava estar à altura”.

É isso aí. Não foi só a garrafa térmica. Glória assistiu a chegada da modernidade: panela de pressão, geladeira, fogão a gás, máquina de lavar roupa – presente de sua irmã Cleonice - rádio, TV, celular, internet. Sempre atenta, nunca escancarou as portas ao consumismo, mas sempre deixou janelas abertas para se renovar. Adotou a modernidade, mas não permitiu que ela esfarinhasse as relações humanas, a vida familiar, matando o que ela tem de consistente. Sempre soube combinar modernidade e tradição. Se duvidar, ela ainda entra no face-book e arranja seguidores no twitter.

Numa vida, cabem vários 15 anos. Na terça-feira, dia 28, Maria da Glória Queiroz Nogueira, muito amada pelos seus, estará debutando, celebrando num só aniversário, vários rituais de quinze anos. Esse escriba que ainda guarda na memória o gosto daquele suco gelado de taperebá, em nome dos 17 irmãos, rende aqui homenagem e admiração à Glória, não só à irmã mais velha, mas à mulher bonita, cheia de graça e sabedoria, de olhos vivos, lúcidos e inteligentes, que com a heroicidade anônima do cotidiano construiu um patrimônio ético no meio de tantas adversidades.

P.S. Link para o texto nos 75 anos de Glória http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=211



GLÓRIA NAS ALTURAS
José Ribamar Bessa Freire
25/12/2005 - Diário do Amazonas

Diga lá: anjo tem sexo, tem pulmão? Há controvérsias. Uma coisa, porém, é certa: anjo tem garganta, o que pode ser comprovado nas canções tradicionais de natal, chamadas pelos espanhóis de ‘villancicos’. Elas têm esse nome, porque eram cantadas pelos ‘villanos’, moradores humildes e simples de pequenas vilas. Nos ‘villancicos’, existe sempre um coro angelical soltando a voz. Num deles, bastante conhecido, anjos anunciam o nascimento de Jesus, entoando a plenos pulmões: “Gló-ooo-ooo-ria”. O eco das montanhas repete o estribilho em latim, no mesmo tom: “In excelsis Deo”.

Existem versões desse ‘villancico’ em quase todas as línguas do mundo. Dizem que ele foi cantado pela primeira vez por camponeses da França, por isso, lá , os anjos são apresentados como cabocões do interior. Numa tradução em meados do séc. XIX, os ingleses deram aos anjos um perfil feminino e urbano. Na Espanha e em Portugal, eles ficaram assexuados. Na Itália, são escandalosos e distribuem “auguri di buon Natale” indiscriminadamente. Na Alemanha, mastigam pedra: “Laut erschallt das Gloria” . No alto Rio Negro (AM), cantam em língua tukano, prestando bem atenção: Bax´as-nãrã.

Hoje, dia de Natal, nas cidades da Europa, no interior da Ásia, em muitos países da África e até mesmo em várias aldeias indígenas da América Latina, povos de diferentes línguas e culturas, estão cantando seus ‘villancicos’, onde os anjos aparecem metendo o pé na jaca, entoando Glo-ooo-ooo-ria. Porém, numa casa do Beco da Indústria, no bairro de Aparecida, em Manaus, esse canto vai se prolongar por mais três dias, com outro sentido. É que no dia 28 de dezembro , Glória completará 75 anos de vida . É sobre ela que eu queria conversar hoje contigo, leitor (a).

O CANTO DO BRÍGIDO

Brígido Nogueira, um humilde alfaiate de Santarém, gostava de cantar ‘villancicos’. Tinha voz de tenor, com a qual gritava os bingos da quermesse da paróquia. Participava do coro do Apostolado da Oração da igreja de Aparecida com João Toledo, Zecafonso, João Dantas Cyrino e outros. Faziam contraponto com as irmãs Feitosa: Cleomar, Dagmar, Lucimar, Dulcimar e a mãe delas, a saudosa dona Rosa. Nos natais da paróquia e do bairro, além do jingobel, as músicas tradicionais de natal traziam alegria e beleza.

Um dia, Brígido conheceu uma menina de 16 anos, órfã de pai e mãe. Era Glória. Acostumado a cantar ‘villancicos’, com sua voz de tenor, cantou Glória, com ajuda dos anjos. Os dois se casaram em 1951 e, juntos, viveram uma relação amorosa exemplar que durou 35 anos. Quando ele se despediu da vida, a viúva ficou protegida pelo amor dos filhos e netos. Telefonei para um deles – o Dandão – pedindo detalhes demográficos. Demorou horas para responder. Pensei que estivesse contando um por um. Na verdade, seria impossível uma pessoa só realizar tal tarefa. Ele estava consultando o órgão responsável.

- “Segundo o último recenseamento do IBGE – disse Dandão – a mamãe teve 19 filhos dos quais 16 gerados no seu ventre e três adotados, sendo 12 mulheres e 7 homens. Todos casaram, tiveram filhos, e deram-lhe 46 netos e 9 bisnetos . Além disso, ela teve 17 irmãos . Esse é o balanço oficial do momento”.

Essa é a Glória. Maria da Glória Queiroz Nogueira, 75 anos, esposa, mãe, tia, avó, bisavó, irmã. Um dia, em Niterói, tive o prazer de acompanhá-la numa visita ao Museu de Arte Contemporânea, projetado por Oscar Niemeyer. O museu parece um disco voador, é uma gigantesca taça de concreto, embaixo do qual fica um espelho d' água, dando a impressão de que está levitando. Glória fez alguns comentários despretensiosos, mas tão interessantes e originais sobre o uso da água como ornamento, que me estimulou a pensar em outros lances que nunca havia pensado.

A GLÓRIA DOS FILHOS

Ela tem muita sabedoria acumulada, sensatez, raciocínio rápido e capacidade argumentativa, o que torna a conversa com ela muito agradável. Especialista em relações interpessoais, fala sobre relações amorosas entre marido e mulher, pai e filho, vizinhos. Com seus olhos vivos, inteligentes e sorridentes, discorre sobre fé, ética, beleza, tristeza, solidariedade, caridade, conflitos, doença, a morte e seus mistérios, o milagre da vida. Sempre aproveita lances da vida real. Em seu discurso, uma história envolvendo filhos, netos e vizinhos tem a mesma função da parábola no Evangelho, servem para ilustrar um princípio mais geral.

Como foi possível um alfaiate e uma dona de casa, pobres, conseguirem educar tantos filhos, todos eles profissionais bem sucedidos? Reproduzo aqui o que um deles – o já citado Mário Dandão – escreveu, discriminando os saberes acumulados por sua mãe.

Economia – Deu lições ao Delfim Neto. Com o salário do velho Brígido, realizou o verdadeiro milagre econômico. Nada de o bolo crescer para ser dividido, dividiu-o quando ainda era minúsculo. Aprendemos a compartilhar solidariamente o pirão.

Nutrição – A panela de comida era enorme, do tamanho daquelas usadas nos quartéis para abastecer a tropa. Se dependesse da D. Glória, o Sesc não faria o prato Brasil, pois não havia perdas, a sobra de hoje (quando raramente ocorria) virava o bolinho ou a torta de amanhã, com um cardápio variado e rico.

Saúde – Consultava o Dr. Contente em casos extremos, para não ser acusada de exercício ilegal da medicina. No geral, usava o melhor da medicina caseira. Minha casa foi um verdadeiro centro de referencia. Crescemos todos sadios, sem plano de saúde.

Meio Ambiente – A casa era pobre , mas limpa, muito limpa. As roupas eram humildes, mas limpas, sempre limpas.

Educação – Poderia assessorar qualquer secretário de educação sobre evasão escolar, nesta área deveria receber o título Doutor Honoris Causa da Sorbonne. Registrou-se apenas uma ou outra desistência e isso mesmo só ocorreu no 3º Grau.

Logística – Conseguiu com muita eficiência organizar, empacotar e distribuir um bando de malas que todos os dias iam para o trabalho e a escola, com turnos e horários variados, alguns deles usando a mesma farda e o mesmo sapato em turnos diferentes.

Direito – Incutiu em todos os filhos um forte sentimento de justiça. Sempre soube respeitar os outros, e era uma leoa na defesa dos próprios filhotes.

Recursos Humanos – Ela soube, como ninguém, motivar os filhos, otimizar o potencial de cada um e orientar para o seu melhor, além de ensinar o verdadeiro espírito coletivo de equipe.

Assistência Social – Silenciosa e discretamente, todas as terças-feiras, numa grande mesa colocada no quintal de sua casa, ela alimenta 30 a 40 meninos que trabalham na feira, fazendo carreto.

Essa é a Glória, minha irmã querida, a glória dos irmãos, dos filhos, dos genros, noras, netos e bisnetos, motivo de orgulho para todos nós, que com ela convivemos. Exemplo de resistência e de fé. Dia 28, os anjos certamente estarão cantando ‘villancicos’, acompanhados pela voz do Nogueira, colocando Glória nas alturas.

Um comentário:

  1. É de uma emoção inenarrável que faço a leitura desse lindo texto, parabéns ao primo Claudio por esse belo blog, serei um frequentador assíduo com certeza. (PEDRO WILSON)

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