Nos últimos dias tenho respondido essa pergunta com muita frequência. “O que foi que aconteceu ? Ela estava bem,” disseram alguns.
O que estava muito bem era a cabeça dela. Ainda estava muito lúcida.
A mamãe morreu dia 24 de julho e dia 28 faria 90 anos e 7 meses. Ela morreu repetindo: “Quando eu ficar velha…” Ficar velha para ela, era ter pouca memória e corpo bastante limitado. Tinha um computador na cabeça. Sabia de datas e números como ninguém. Se um dia lhe disseram um número de telefone, data de nascimento, casamento ou mortes ou determinado acontecimento, ela jamais esqueceria. Era a ela quem recorriarmos para obter informações sobre esses assuntos. "O fulano morreu, no ano tal, dia tal; eu estava de resguardo de fulana." E por falar em resguardo, ela esteve grávida por 144 meses, ou seja, em um período de 20 anos, ela esteve grávida por 12 anos.
Ela ainda dava ordens, administrava sua casa e tinha interação diária pessoalmente ou pelo whatsapp (ferramenta que dominava muito bem) com todos os membros de sua imensa família e com muitos amigos.
Passou sempre com excelentes notas nos exames de sangue, colasterol, triglicerídeos e etc. Deixando os médicos surpresos. E o Pulmão e o coração ? Esses sempre excelentes.
Mas há uns três anos ela disse ao filho que ela amava: “O médico me disse que eu tenho um coração excelente, mas a idade pesa e ele vai ficando fraco. As emoções vão acumulando e ele vai enfraquecendo.”
No dia da partida dela, a nossa vizinha, Severina, mais conhecida como Nega Pesado, que tem 91 anos, me disse: “ A Glória deveria fazer como eu: tomar um copo de vinho todos os dias.” Há aqui um pequeno detalhe. A familia da Dona Nega é ela e filho. A Dona Glória tinha uma família (filhos, netos, bisnetos, genros e noras, dela e dos filhos) que passava de 100 pessoas. Ela era preocupada com os problemas de cada um. Nesse caso, um copo de vinho não era suficiente; seria necessário, no mínimo, uma garrafa inteira.
Dia 26 de julho, dois dias depois de sua partida, Dia dos Avós, Dia da Festa de São Joaquim e Santa Ana, ela comemoraria 70 anos do seu casamento. Casou-se no dia da festa dos santos da devoção dos noivos. E nós, seus 18 filhos, que moramos em Portugal (2), Estados Unidos, Curitiba (2), Sorocaba (SP) e Manaus estaríamos todos presentes. Mas Deus tinha outros planos: “Vocês estarão presentes na despedida dela. Todos os 18 e mais os netos e bisnetos, genros e noras; todos ao redor dela."
Amanheceu o dia 24 gravando vídeos para os filhos, cantando, recitando, mandando mensagens. Quando sentiu que a sua hora tinha chegado, falou para os que estavam por perto: " Chamem meus filhos que eu estou partindo. E estou em paz." Começou a rezar o terço, depois deitou-se, continuou rezando, mas sem som, somente mexendo a boca, e assim entrou na glória de Deus. Partiu como quem apenas dorme.
Mas tem outro detalhe nessa estória. Quando ela disse que iria partir chamamos paramédicos que ligaram nela um frequencímetro, aparelho que mede a frequência cardíaca, e no momento que ele registrou que o coração parou, uma filha, Eliza, não estava presente, a única ausente.
Ela chegou no quarto gritando: "Mamãe, eu estou aqui !" O frequencímetro voltou a registrar batimentos cardíacos. Pronto ! Ela já podia partir em paz.
Alguém pode dizer: “Poxa ! Não dava para esperar só mais uns dias ?” Não. Era assim que Deus queria que fosse.
A mamãe não morreu porque a sua válvula mitral já não funcionava normalmente e, por isso, sabíamos que a sua partida iria acontecer a qualquer momento; apesar da mente ainda funcionar maravilhosamente bem. A mamãe não morreu na véspera, nem um segundo antes e nem um segundo depois do que Deus decidiu.
A resposta a pergunta que muitos fazem é simples: A mamãe morreu de amor. Morreu por amar muito; os seus e os desconhecidos, a quem ajudou muito com atos concretos de caridade. Os pedidos de orações chegavam toda hora e eram muitos. Ficávamos pensando como tirá-la do whatsapp. “ Meu filho” – ligou-me – “morreram de Covid o [João Batista] Gama e a Amazonilda [esposa dele], estou pensando na dor das filhas deles.” “ A Auxilium perdeu o neto. Estou rezando pela dor deles.” E assim era.
Se amava muito, partiu convencida – e repetia sempre – que era muito amada. O amor que recebia dos parentes e amigos contribuiu para ela que vivesse muito, repetia com frequência. Era uma motivação para continuar vivendo. E esse amor recebido fortalecia o coração dela.
Uma vez o padre Noé, redentorista da Aparecida, me contou a seguinte estória: “ Um casal de velhinhos morreu e foi para o Paraíso. Chegando lá, vendo aquela maravilha toda, o velhinho falou meio irritado com a esposa: ´Se não fosse a sua mania de comida natureba, nós já estaríamos aqui há dez anos.” Nós queríamos que a mamãe chegasse aos 100 anos, mas ela foi com dez anos de antecedência. Ela merecia isso.
Dia 26, ela, junto com o noivo, depois de 35 anos juntos e 35 anos separados, comemoraram os 70 anos de união. E nós, seus 18 filhos, também não poderíamos deixar passar essa data sem nenhuma comemoração: almoçamos juntos na casa dela, pela primeira vez sem sua presença a física, mas felizes, rindo, chorando e como sempre, todos falando ao mesmo tempo. Depois, fomos para a frente da casa para a foto oficial. A vizinhança, especialmente a Dona Nega, que tudo observava e não entendia nada, se perguntava: “ O que é essa alegria toda ? A mamãe deles não morreu há dois dias?"
Mamãe e o filho que ela amava |
A noite, dando continuidade a programação, nós filhos, netos , bisnetos e agregados fizemos a festa dos 70 anos de casamento dos nossos pais.
Isso só foi possível pelo que aprendemos com eles. Sabemos que o dia mais feliz nas vidas deles, foi o dia da partida de cada um. Eu gosto de dizer que a morte, para algumas pessoas, só é ruim para os que ficam.
Fizemos a festa, cantando, comendo, bebendo, chorando, felizes e tristes, mas com muita fé. Fé que aprendemos com eles. É a alegria do agradecimento. É uma dívida impagável para com Deus. Pela sua bondade e generosidade para conosco, que não somos merecedores de ter tido os pais que tivemos.
Deus é muito bom. Morrer é muito bom! A mamãe merecia morrer.
Muito obrigado Deus Todo Poderoso !
Cláudio querido, me fizeste chorar. Mas não foi um choro de tristeza, foi de saudades e de alegria. Uma alegria que a vizinha Nega jamais conseguiria entender.rs Esse texto ,onde sintetizaste com grande maestria a grande vida da nossa matriarca, explica tudo! "É muita amor, D.Nega! A gente consegue ficar feliz porque as lembranças são marcantes". A nossa queridona muito viveu porque muito amou. Essa era a D. Glória , uma grande referência pra mim pela sua sabedoria de vida até na hora de partir. Te amo, minha irmã. Tu és eterna entre nós!
ResponderExcluirQue lindas e emocionantes palavras♥️🙌🏼 Nossa família a amava e a admirava muito! Um viva a tia Glória no Céu 🙌🏼
ResponderExcluirEmocionei! Vi de perto o amor da D.Glória com os dela e com os que ela acolhia. Ela transbordava de amor nas palavras e nas ações.Gratidão por ter conhecido esse amor em forma de gente.
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